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Quando Kyousogiga estreou em 2011 no seu formato ONA (animações exibidas pela internet –
Original Net Animation) e finalizou em 2012 totalizando 6 episódios, eu me
senti contente pela experiência, que mesmo com a qualidade de imagem bem mais
ou menos, já valia pela direção elíptica e seu forte senso estético em se
comunicar através do caos visual. Mas fiquei frustrada com o resultado final
que não levava a lugar algum. Felizmente, aparentemente era só o embrião de uma
ideia bem maior que se revelou em 2013 com a exibição da série em formato tv.
Ou será que é a ideia de algo curto que foi expandida e elucidada, perdendo
assim o seu charme caótico?
A história tem como cenário a “mirror capital”, que nada
mais é do que uma cidade espelhada na histórica e folclórica Kyoto. Essa
capital ganhou vida através de uma pintura do monge Myoue (Akira Ishida), que dotado de habilidades sobrenaturais, consegue
dar vida a qualquer desenho que faz em um pergaminho. Sentindo-se solitário
isolado no meio do nada num templo budista, ele faz o desenho de um coelho
preto e lhe dá vida, para que assim não se sentisse mais tão solitário.
No entanto, este coelho, que se chama Lady Koto (Aya Hisakawa), se apaixona por Myoue.
Num encontro com uma bodhisattva, que se apiedou do seu sofrimento, Koto ganha
a forma de uma mulher por determinado período de tempo e confessa seu amor a
ele.
Após juntarem os panos
de bunda, Myoue salva uma criança da morte, lhe dando a imortalidade, e dá
vida à mais dois desenhos com aparência infantil chamados Kurama (Shigeru Nakahara/Ryoko Shiraishi) e Yase (Eri Kitamura), formando uma família
com Koto. Porém, a sociedade foi ficando cada vez mais desconfortável com esta
situação, e a única saída encontrada por ele é dar vida a outra Kyoto, onde
todos pudessem viver sem limitações e juntos.
Porém, Myoue e Lady Koto desaparecem, deixando seus filhos
no controle da Cidade Espelhada até que enfim retornassem, mas o tempo de
espera parece infinito para seus filhos. É quando surge uma garotinha com um
martelo colorido gigante destruindo tudo, com o mesmo nome da mãe deles, Koto (Rie Kugimiya), e tudo se torna bastante caótico na pacifica cidade.
O aspecto mais forte e competente de Kyousogiga está no modo
hábil e natural com que o roteiro da Rie Matsumoto e Izumi Todo costura todas
as referências folclóricas e culturais que moldaram e deram vida ao enredo.
Verdade seja dita, é uma união de vários conceitos que ganhou vida própria,
assim como os desenhos de Myoue; isto é bem obvio ao descascar a fórmula elíptica
da narrativa e perceber o quão simples é o enredo. Suas inspirações são bem obvias [para
o japonês médio], mas que seja, pois o motivo de estarem ali vão além do mero fanservice;
representam uma ideia, e é bonito ver como ela funciona harmoniosamente, mesmo que a série dê uma escorregadinha em determinado momento, com um corte desnecessário. É orgânico, é legal. Passa uma sensação de naturalidade.
Por exemplo, quando eu descobri que originalmente ao lado do
templo de Myoue, existem de verdade mais outros dois templos que formam uma
trindade – que na história são cuidados pelos três filhos (Yase, Kurama e Yakushimaru) do casal depois de desaparecem – eu
pensei comigo “uau, que bacana”. O próprio Myoue levar o nome de um famoso
monge budista do Japão é algo que também acaba acentuando bastante o conceito
do personagem ao se perceber que a essência do mito fora mantida: a solidão
provinda do afastamento social, as responsabilidades que deveria carregar e sua
força de vontade em permanecer puro.
Só que com uma pitada de imaginação, do tipo, “e se ele estivesse cansado, e ao encontrar uma companheira, deixasse
aflorar seu egoísmo humano e abandonasse suas responsabilidades?”. Uma
curiosidade que dá base argumentativa a esta minha neurose, é o fato de que o
verdadeiro Myoue tinha como única companhia um cachorro (que aparece simbolicamente na história), mas este ao contrário do
coelho Koto, não ganhou vida, rs.
Podemos pensar sobre isto e do quanto pode contribuir para
um personagem distante como Myoue, e suas motivações tão vagas e tolas. Que
embora passiveis de compreensão, seus conflitos possuem um apelo fraco, ou
assim eu pensava anteriormente, justamente pelo distanciamento do personagem. E
ainda que retorne à cena, é de um modo tão abrupto e com tantas informações expositivas,
que soa como um drama burocrático e frívolo, incompatíveis com a imagem que tínhamos
do monge no inicio, mas é algo que se encontra justificativa na própria
história, como comentarei adiante.
Durante a série, alternam bastante o estilo artístico da animação, ora mais estilizado para estabelecer a diferença entre qualquer outro mundo e o mundo da Cidade Espelhada, ora com paletas de cores mais frias para estabelecerem um vínculo entre imagem e os sentimentos internos dos personagens, e etc, etc. |
O que é a vida, se não um sonho? - ep 1.
Mas entre todas as referências, a mais visível para nós é a
de ‘Alice no País das Maravilhas’ e ‘Através do Espelho e o que Alice Encontrou
lá’; além de ser o que para mim resume bem o enredo de Kyousogiga. Alice no
País das Maravilhas é a narrativa do sonho de uma garotinha. Como é comum em
todos os sonhos, as regras da realidade são quebradas. Então, quando Koto
adentra na Cidade Espelhada, as cores são mais coloridas, as formas são mais
cartoonizadas, e o mundo funcionando com uma logica diferente, surrealista. E a
única que consegue quebrar essa logica era ela, com seu Martelo Aratama. A
pequena Koto também estava à procura do sua mãe, e com seu Aratama, ela quebra
o selo que separa a Kyoto real da Kyoto dos sonhos e adentra a Cidade
Espelhada. Ainda não sabemos, mas a simples presença de Koto ali irá quebrar um
círculo de conflitos não resolvidos.
Como Alice, Koto não compreende muito bem aquele mundo, mas
ainda de posse de sua ingenuidade infantil, ela é capaz de aceitar facilmente e
como uma criança que é se misturar e transformar sua aventura em uma grande
brincadeira, enquanto se mantém ignorante à questões complexas que não consegue
compreender – e nem tão pouco os adultos pensam em lhe explicar. Ela apenas
obedece e tenta atender os pedidos daqueles que gosta, como podemos ver quando
ela atende às vontades de Kurama, sem compreender o que tudo aquilo significava,
que lhe retribuiu dizendo “nunca confie em adultos”.
Alice é um livro de infinitas perspectivas, mas a maior
delas é sobre o crescimento e a dificuldade de compreender um novo mundo que se
apresenta. Para Koto, tudo deveria ser simples, sem complicações, como podemos
ver no modo como ela age na primeira parte do anime (algo entre o episódio 0 e o 6), não pensando nas implicações de
seus atos.
Porém no decorrer, Koto vai amadurecendo sutilmente, como
podemos notar na segunda e ultima parte, se questionando e questionando o que
está ao seu redor, assim como acontece com a Alice, só dessa vez em Alice
Através do Espelho. Na Kyoto espelhada, tudo parece refletir como um espelho (Dica: Nosso Instinto Primitivo Refletido).
Myoue que sente o reflexo de seu pai e o fardo que isto traz consigo; algo que
ele não consegue lidar, e se reflete em eu filho; Senshoumaru (Kenichi Suzumura/Chiwa Saito), que
herda as responsabilidades do pai em sua ausência, ainda que não seja o que ele
queira.
Senshoumaru e Myoue se assemelham em muitos aspectos, e se
espelhos muitas vezes aludem à ideia de “Verdade”, é possível que, entendendo o
filho, se compreenda o pai. Espelhos simbolizam a verdade da alma e, ao mesmo
tempo, mostra a inversão daquilo que foi estabelecido. Dessa forma, eles podem
ser muito parecidos e ao mesmo tempo muito diferentes. Myoue por mais que negue tudo àquilo,
não foge, permanece convicto, ainda que em determinado momento chegue a recusar
a função que seu pai lhe oferece (dica: Silver Spoon - Escolhas & Expectativas). Koto, já num processo de
amadurecimento, a aceita, mas não sem questionar a legitimidade daquilo, nem deixa de medir as consequências de seus atos. Koto, que, assim como
eles, se assemelha tanto com sua mãe, Lady Koto, também exibe suas próprias
particularidades; a fraqueza de uma e a força da outra. Sua força de vontade e
superação motivam Senshoumaru, que agora menos resoluto, se abre a
questionamentos.
Kyousogiga fala sobre as relações humanas, presas à
aparência inofensiva e rotineira do cotidiano, para depois ir rompendo sua
superfície tranquila e, lá no fundo oculto, tocar as motivações e pulsações
secretas que revelam a duplicidade da vida vivida e/ou a mutilação interior dos
seres que a vivem.
O espelho é um dos elementos simbólicos mais utilizados numa
narrativa. É bacana ver este jogo do duplo estabelecido em Kyousogiga. Mesmo a
unicidade paradoxal entre budismo e animismo presentes no enredo, não foge a regra.
Ao contrário de outras religiões pelo mundo, o budismo e o animismo podem ser
exercidos pacificamente em conjunto pela mesma pessoa. Na série, eles se
completam em seus contrastes; um mundo onde deuses animistas coexistem com as
filosofias de Buda (dica: Saint ☆ Young Men: O Cotidiano de Dois Homens Santos).
Esta é a história de amor e renascimento de uma determinada família.
Uma família é uma entidade coletiva, mas com peças tão
diferentes, e que se complementam. Muitas dessas peças com origens tão
distintas. Como Yase e Kurama, trazidos a vida pelo conceito de animismo que dá
forma e personalidade a objetos, ou mesmo ilustrações (dica: o Terror de Le Portrait de Petite Cossette). Como Senshoumaru,
renascido graças à crença budista. Lady Koto, uma criatura que ganhou
consciência por uma técnica pagã; e um corpo, pela compaixão de uma Bodhisattva.
Myoue, um monge, mas filho de um ser animista.
Dessa mistura homogênea, Kyousogiga estabelece um retrato
terno e quente de uma família contrastante (dica:
Uchouten Kazoku - Conceito de Nova Família), que apesar de todas as diferenças
e conflitos estabelecidos, encontram no amor que possuem a motivação necessária
para superarem as adversidades que os distanciam. Como disse Koto, amor é estar
junto. Estar junto é que é amor. O amor que você carrega, é o que pode
salvá-lo. Soa piegas, mas depois que se cresce, percebe que é uma verdade
universal.
É a única coisa que pode salvar uma família disfuncional com
membros que tomam atitudes tão questionáveis e passiveis de ódio. Alguma vez já
se perguntou se seria capaz de manter amizade com algum membro da sua família –
biológica ou não – caso eles não fossem sua família? Myoue e sua tola
insegurança, brilhantemente retratado durante parte da série como adulto, e em
outra parte, como criança; enquanto age como um, suas ações refletem sua
aparência. No entanto, quando resolve simplesmente fugir, ao invés de encarar a
situação, e assim abandonando sua família e relegando suas próprias responsabilidades
sobre os ombros deles; suas ações então acabam por refleti-lo como uma criança
com uma mascara, escondendo sua fraqueza.
Por que meu pai me deu este poder e depois sumiu? O que meu pai quer de mim?.
No fim das contas, Kyousogiga mostrou que certos círculos podem
e devem ser quebrados. Que se pode renascer a qualquer momento, através da
ruptura daquilo que lhe causa a inercia.
Mas nem tudo são flores meu caro gafanhoto. Em sua segunda
parte, o ritmo da série cai bastante, a fórmula estabelecida de eventos
caóticos contados sem linearidade é um dos grandes charmes da série, só que o
clímax acaba se mostrando bem menor do que encadeamento das ações fazia parecer.
A enorme quantidade de informações que o roteiro despeja nesta segunda metade é outro agravante que priva da explosão climática na virada do enredo. A edição de
Kyousogiga é excelente na maior parte do tempo, conseguindo dar coerência
narrativa e sentido a uma série que têm seus acontecimentos embaralhados, que vão de trás para frente em frações de segundos, propositalmente, criando assim momentos vibrantes e fazendo desta uma grande
brincadeira com o que uma animação pode oferecer. E concomitantemente, fechando
lacunas.
Mas fica a forte impressão de que quiseram preservar o
grande mistério do enredo, e para isto, criaram uma barriguinha no ponto alto da
narrativa: não precisava. Detalhes que pensam um pouco na experiência final. Pessoalmente, para mim tudo isto é pouco perto dos feitos da
equipe da série, como visto no episódio 10 e sua ótima composição audiovisual. Kyousogiga
termina com uma impressão tão forte que me deixou com uma imensa vontade de
querer ver mais dessa Toei que tão pouco sai da curva. Precisamos de mais Rie
Matsumoto e Izumi Todo em outras séries. =)
Ps¹: Izumi Todo um pseudônimo do coletivo artístico da
Toei Animation.
Ps²: Não deixei espaço para falar mais a fundo dos aspectos
técnicos, mas acredite que mesmo a parceria entre Toei e a empresa de
brinquedos japonesa Banpresto não revertendo em um patrocínio acima da média, a
staff criativa sabe tirar proveito do baixo orçamento ao trazer sempre um novo interessante conceito a cada episódio.
Ps³: Se for assistir, não deixe de conferir o episódio 00 e o especial 5.5. De nada.
Nota: 08/10
Diretor: Rie Matsumoto
Roteiro: Rie Matsumoto, Izumi Todo
Estúdio: Toei Animation
Tipo: TV
Episódios: 10 (+ 3 especiais)
ANN: http://goo.gl/LxtiS8
MAL: http://goo.gl/TjFPN5
Dica de Leitura Complementar:
-Kyousogiga, a Home Like Any Other (Wrong Every Time, em inglês)
Temas Relacionados
-Nosso Instinto Primitivo Refletido
-Silver Spoon - Escolhas & Expectativas
-Saint ☆ Young Men: O Cotidiano de Dois Homens Santos
-Revistando o Terror de Le Portrait de Petite Cossette
-Uchouten Kazoku - Conceito de Nova Família
Ps³: Se for assistir, não deixe de conferir o episódio 00 e o especial 5.5. De nada.
Nota: 08/10
Diretor: Rie Matsumoto
Roteiro: Rie Matsumoto, Izumi Todo
Estúdio: Toei Animation
Tipo: TV
Episódios: 10 (+ 3 especiais)
ANN: http://goo.gl/LxtiS8
MAL: http://goo.gl/TjFPN5
Dica de Leitura Complementar:
-Kyousogiga, a Home Like Any Other (Wrong Every Time, em inglês)
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