Calma que não é a do Gregor Samsa!
Este não é um texto sobre o fantástico Ping Pong The
Animation. Na verdade é. Quer dizer, não particularmente sobre, mas com relação
a determinada passagem do episódio 02. Verdade seja dita, foi o que me motivou
a escrevê-lo. Quando me referi à Ping Pong como fantástico, eu estava pensando em como a série [nestes 02 episódios
iniciais] alinha com uma fluidez envolvente imagens, roteiro e sons, criando
uma narrativa que cresce gradativamente – num crescente de intensidade – até
explodir em um clímax inquietante. Em particular neste episódio 02, o clímax se
assemelha ao gozo, característica realçada nas feições do professor e mestre do
protagonista Smile, que vai ao chão plenamente realizado física e mentalmente.
É uma série que usa muito bem os seus recursos. Todos os
elementos individuais se integram para contar uma história, cada partícula
contém um fragmento dessa história que está sendo contada. As características e
ações do Smile – leia-se: seu comportamento fora e dentro das quadras – dizem
muito sobre quem é e como pensa. Então, quando apareceu um professor que
acreditava em seu potencial, acuando e levando-o ao limite numa partida, você
não tem apenas uma trama sobre os conflitos internos do protagonista como
também um clássico recurso de aprendizado convergindo numa partida esportiva
intensa e vibrante – que converge numa climática explosão emocional. É o clássico
treinamento, mas aqui executado em apenas um episódio. É que o lance de Smile é
mais psicológico que técnica. A narrativa desenvolve o centro esportivo do
enredo e ao mesmo tempo, usando o ping pong, desenvolve os conflitos dos
personagens. Seu desenvolver ocorre concomitantemente com o seu desenvolver como atleta. O autor usa de uma linguagem simples em que qualquer pessoa
consegue absorver, apenas olhando e sentindo. As palavras têm alcance maior
quando apenas refletem as ações dos personagens, ao invés de exercer a complexa
função de explicar o que ele está a sentir.
Este é o papel fundamental da imagem, um recurso utilizado
desde tempos mitológicos quando as primeiras pessoas a viver neste planeta
registravam seu conhecimento em pedras. Brincar com esses signos tem sido um
fetiche da mídia visual.
Ping Pong The Animation |
Smile é um garoto introvertido, tendo sofrido bullying na
infância e adolescência – pelos mesmos motivos que grande parte das vitimas dessa
anomalia social: apenas por não aderir à ciranda, preferindo ficar no seu canto
– ele cresceu determinado a evitar todos e quaisquer conflitos, ainda que para
isso precisasse se reprimir. Pela ausência de desafios em seu cotidiano, ele
acaba por viver uma vida apática, muito disso sendo um reflexo do seu extremo
talento (essa sua característica como
jogador é o que o define como pessoa no círculo social), que não desperta
nenhum sinal de rivalidade em seu interior. Seu processo de despertar vem com o
treinamento. Quando seu professor tem sucesso em fazê-lo se abrir novamente ao
competir como um predador, sem se reprimir, Smile deixa de ser um vegetal e se
transforma numa máquina. É então que ocorre uma de minhas sequências preferidas
na série: da apatia à explosão emocional (de
uma sombra com fisionomia humana, mas sem traços de personalidade; apático, apagado,
cabisbaixo ao fulgor de uma máquina explosiva exibindo todo seu potencial),
uma transformação que é simbolizada em cena pela metamorfose de uma larva em
borboleta.
Clube de Compras Dallas - Espero que vocês não tenham ataques epilépticos! DESCULPEM!! |
É um recurso usado frequentemente em mídias visuais para
denotar transformação e renascimento. Nem sempre claro, pode acontecer de ela
ser apenas um elemento natural da paisagem ou algo assim, mas quando seu signo
é utilizado para complementar o conceito de um personagem, pode render sequencias
repletas de significados. É o caso do filme Clube de Compras Dallas (Dallas Buyers Club), que conta a
história de um cowboy extremamente homofobico que se descobre portador do vírus
da AIDS. O filme narra seu despertar em uma nova pessoa, quando impelido pela
doença, desperta uma sensibilidade tão comum quando lidamos com a morte, ao
ponto de se tornar amigo intimo de um gay (que
é vivido lindamente pelo Deus grego do Jerad Leto!). Algo que seria impensável
antes de sua transformação. É neste ponto crucial em sua vida, que acontece a
bela sequência em que ele abre os braços, fecha os olhos – enquanto é coberto
por diversas borboletas. É o momento em que ele se redescobre por inteiro.
Entre muitas obras, Efeito Borboleta (The Butterfly Effect) e Nijigahara Holograph são algumas que
fazem uso intrínseco das borboletas eu seus enredos. Inclusive, em Nijigahara
Holograph, as borboletas chegam a consumir [metaforicamente] o corpo do
protagonista – elas estão por todos os cantos nessa obra e sintetizam o caráter
mutante de todos os personagens, que no decorrer da vida passaram por diversas metamorfoses,
embora o protagonista continue preso num ciclo infindável tal qual o de Efeito
Borboleta.
Nijigahara Holograph |
As borboletas simbolizam o ciclo da vida, de morte e
renascimento. Já diriam vários poetas, profissionais e amadores; assim que se
nasce, já se começa a morrer. O final traz consigo um novo começo. Essa
simbologia da borboleta é similar à das cigarras, porém tem origem nos mitos
gregos. Com a figura feminina sendo representada como a personificação da alma,
exibindo lindas asas de borboleta, diz-se que a alma era como a borboleta –
simbolizando seu espirito imortal. Quando a pessoa morria, seu espirito
abandonava este corpo na forma de borboleta. Faz sentido, afinal, o seu ciclo
passa pela fase do ovo; da larva; do casulo e finalmente a esplendorosa forma
final; a transformação onde a crisálida morre para que possa nascer a borboleta.
Cada cultura tem a sua própria crença, ou várias, fazendo com que esse mito
possua tantas variações quanto os dedos das mãos. Mas, falando de japoneses, a
crença na filosofia de Buda onde a morte não é realmente o fim e sim um novo
começo em que se pode reencarnar nas mais variadas formas, é evidente em como
sua cultura se apega com afinco a essa filosofia dos ciclos nas mais diversas
obras.
A beleza nessa filosofia é a de que esses estágios cíclicos não
precisam ser traumáticos, mas a nossa incompreensão, complexos e imaturidade fazem
com que nos debatemos, tornando a experiência dolorosa até alcançarmos a plena
maturidade do último estágio. Psycho-Pass e Oyasumi Punpun são duas obras que
não utilizam do signo da borboleta, mas que tem embutido em sua moral essa
filosofia – não por acaso, é só e apenas no último momento em que seus
personagens compreendem a magnitude do mundo que os rodeia e então passa a
encará-lo com uma nova mentalidade. Assim como as borboletas, que seguem o fluxo
normal de amadurecer e se transformar, abandonando a zona de conforto do seu
casulo a fim de explorar um novo mundo que se abre diante de si, sem receios de
abrir suas asas e voar em sua imensidão. Porém, é exatamente essa perspectiva singular
sobre a vida que nos difere de todas as demais espécies que coabitam este
planeta. Para um garoto como Smile, permanecer no conforto do seu casulo [físico
e mental] e evitar os atritos é uma experiência bem mais tentadora do que
encarar um mundo ameaçador.
O que há de muito belo nessa neologia com as borboletas, é
que todas as etapas para a sua evolução seguem uma lógica que também é
imprescindível para nós. Não se deve apressar, nem mesmo estagnar. Cada estágio
é uma preparação para a etapa seguinte, como diria aquele poema (“Porque
agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço
em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.”). Não é de
se estranhar que crenças populares nos assemelhem com o ciclo das borboletas, que
também carregam consigo o prisma da sedução e mistério. Nossa existência é
breve, tal quais algumas mariposas que só vivem 24 horas, mas estas só podem
exibir suas belas formas uma única vez, já Smile pode abrir suas asas incontáveis
vezes. Apesar disso, seja qual for o tempo de vida de cada especie neste
planeta, a questão filosófica estará sempre incomodando: qual o proposito da
vida? Para os evolucionistas, não há proposito. Surgir, multiplicar e evoluir.
Mas animais, insetos e criaturas diversas não sofrem crises existenciais. Eles
simplesmente são. Enquanto eles querem apenas passar seu gene adiante, nos não
nos contentamos em apenas ser. Também queremos ter. Logo, podemos imaginar que
ser um robô não será o suficiente para satisfazer Smile.
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