quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Kino no Tabi – Episódio 02: O Preço de Uma Vida

[The Story of Man Eating]
> Kino no Tabi – Episódio 01: O Essencial é Invisível aos Ouvidos

Exibição Original: 15 de Abril de 2003
Episódio: 2
Sinopse: Kino e Hermes encontram alguns homens com problemas na neve e decidem ajudá-los, trazendo-lhes um pouco de comida. Depois de alimentados e fortes novamente, os homens têm uma estranha forma de reembolsar sua bondade.
Storyboard: Kooji Kobayashi
Diretor de Fotografia: Naoyuki Ohba
Diretor de Animação: Fumio Matsumoto
Diretor: Ryutaro Nakamura
Diretor do episódio: Ryutaro Nakamura
Roteiro: Sadayuki Murai 
Este é um episódio curioso, que novamente nos parece plano a um primeiro olhar, mas repleto de detalhes em sua condução que o torna degustativo. Apreendeu-me os sentidos logo nos primeiros segundos pela ênfase colocada no ato de Kino cassar e matar um coelho. Há várias formas de construir uma cena seguindo esta descrição, mas a de Kino no Tabi exerce uma grande força magnética ao privilegiar uma atmosfera imersiva. Não sei bem qual palavra utilizar que melhor consiga descrever o que senti nesta primeira sequência, mas os sentidos apontam algo que pede por reflexão naquele ato de matar; embora não se saiba com clareza a natureza exata daquele questionamento, apesar das possibilidades aparentes. 

Isto emerge subjetivamente porque a cena é construída diegeticamente, ou seja, com sons naturais do próprio cenário em que Kino está inserida. A direção do anime, capitaneada pelo magnifico Ryutaro Nakamura, tem notadamente exercido uma animação minimalista, e os maneirismos corporais de Kino são econômicos, além de ela mesma se mostrar até agora sempre composta. Isso auxilia na imersão da cena, evitando que percamos o foco, mas é no timing, no semblante e postura relutante diante do ato que pratica que a cena emerge em densidade substancial, capturando e instigando sua atenção. Timing é tão crucial para uma narrativa de sequenciamento visual quanto o ar é para os seres humanos. Neste caso, a direção sabe evidenciar com naturalidade a aparente hesitação de Kino, assim como as nuvens que se formam em seu rosto inexpressivo, denunciando o seu lamento e pesar ao se ver impelida em tirar a vida do coelho, que emerge como ondas poderosas, transformando inexpressividade em algo mais sutil. 

É um começo tão significante e empaticamente forte, que as sensações deixadas por ele perdura por todo o episódio, até mesmo após, se tornando a epitome de um episódio na memória de quem o viu, onde o peso de uma vida, mesmo uma vida aparentemente insignificante, é retratado laboriosamente a tal ponto que você pode sentir o seu pesar sobre os ombros. 

***

A Tale of Feeding Off Others é estruturalmente um conto, uma parábola que ao contrário do que se espera neste tipo de história, não entrega uma verdade através de uma moral, mas duas verdades igualmente verdadeiras que, no entanto, podem ser interpretadas como certo e errado a partir da perspectiva de cada pessoa ou cultura. 

Neste sentido, o título do episódio nos leva a refletir sobre seu conteúdo, acerca do ato de tirar uma vida para sua própria sobrevivência (a questão do negocio do rapto de pessoas transformadas em escravos pode ou não ser encarada como um elemento a parte: eu prefiro ver apenas como uma caracterização que alude à natureza do homem e provoca o senso moral de quem está assistindo, afinal, para atingir o seu clímax e o questionamento pretendido, era necessário de algo para desequilibrar a balança e tornar a coisa toda um tanto mais complexa). Eles mataram sua mercadoria e a comeu, a fim de se manterem vivos; Kino por sua vez troca a vida dos coelhos pelas deles, e no fim, os mata, a fim de se manter viva. 

Todo este processo não é encarado por uma perspectiva grotesca, mas há atmosfericamente algo de brutal que alude ao primitivo humano. No entanto, ao contrário da perspectiva comumente entre nossos antepassados Neandertais em relação a este processo, o ato de tirar uma vida aqui possui um peso substancial, adquirido pelo homem moderno. O modo quase místico, extremamente respeitoso, com que Kino trata a vida dos coelhos, é o que dá substância para que possamos sentir aquelas vidas se esvaindo significativamente. Assim, como também, o choque e medo que aquela situação – quando se vê prestes a ser transformada em escrava – lhe causa, provocando-a pela primeira vez uma desarmonia aparente.

O desfecho novamente surge como uma gema com uma nota sútil e abstrata, revelando a moral relativa da história: Hermes, sua moto senciente, lhe pergunta se ela voltaria a ajudar alguém em necessidade, depois disso tudo. Ela por sua vez, não responde, o episódio termina com a nota “estas coisas vão sempre acontecer, porque somos humanos”. Seu silencio não é indiferente, ele é carregado de significados ocultos da emoção humana. É um silencio de quem reflete e busca lidar com sentimentos contrastantes, sendo que a resposta não é fácil, seja por qual motivo for, mas aparente a qualquer um que olhar: oras, Kino já havia respondido esta questão lá atrás, quando diz a Hermes o que a motivou a optar pela vida dos homens em relação a dos coelhos; ela gostaria que lhe fizessem a mesma ação, revelando que mesmo quando praticamos boas ações, estamos primeiramente pensando em nós mesmos. A resposta de Kino, ao final, é o silêncio, um silêncio – a meu ver – resignadamente afirmativo, silencioso porque é algo que nos foge do controle. Essas coisas apenas acontecem e não há nada que se possa fazer, a não ser sentir e seguir em frente.

***
A sequência inicial estabelece-se num cenário submerso pela neve, com muito pouco de fundo, com o branco predominando, onde o contraste de cores é utilizado como ponto de referência para os olhos. É bem funcional em transmitir o humor frio que permeia o episódio, em contraste com as esparsas cores quentes que ilustram o aspecto duro das ações que ocorrem ali. O branco da neve contrasta com a mira e o sangue vermelho que escorre do coelho branco, alardeando a profanação de algo puro, com o pecado escorrendo em vermelho. Pura é a alma. Pecaminoso é a retirada de uma vida com as próprias mãos. O episódio tem todo este aspecto lúgubre flertando com o místico em tom fabular. 

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Os coelhos são aqui criaturas constituídas quase que metaforicamente, a fim de ilustrar os conflitos de Kino em relação a temática do episódio. Kino mata três coelhos e pendura suas peles, respeitosamente, em um varal. No terceiro, quando finalmente os 3 homens mostram o que são realmente, ainda que Kino não esteja em um país, entende-se que sua regra de 3 dias se insinua nos dizendo que de fato 3 dias são mais que suficientes para compreender a essência de um país. Ou... das pessoas que ali estão. 

3 Coelhos mortos. 

3 homens mortos. 

Pela necessidade de se manter vivo. 

Ao fim, Kino olha com pesar para as peles penduras. 

Ela fracassou. Mas estas coisas estão sempre acontecendo.

***

A segunda grande sequência do episódio se dá ao fim, com a revelação da identidade dos 3 homens. Ela contrasta com a animação minimalista do começo. Kino é obrigada a desarma-se, e nos é permitido então ver com certo alarme a extensão de seu arsenal. Duas armas, umas meia-dúzias de pequenas armas brancas variadas devidamente amoitadas sob as camadas do seu vestuário. A última é como a Kino: perigosa se for tomada apenas por sua aparência inofensiva. Se tratava de um inteligente e traiçoeiro dispositivo multifunção, que além de faca, também atirava. 
Quando a neve cai sobre um dos homens, em um acaso providencial, e este se distraí, ela não desperdiça a chance e atira-lhe na cabeça. Em seguida corre em direção ao outro, atordoado, e num giro de corpo, toma suas costas com uma torção de braço e a perfura com a parte pontiaguda da arma. Seu companheiro atira, mas ela protegida nas costas do outro, o utiliza como escudo e numa brecha, joga o corpo morto sobre o outro, que se atrapalha e perde o equilíbrio e cai. Esta surge triunfal fitando o de cima para baixo, onde milésimos de segundo que parecem durar uma eternidade, como se saboreando o momento, para então tirar-lhe a vida em um tiro seco.

É uma sequência que não dura mais do que 1 minuto, mas traz um animação performaticamente simples e bonita, com um storyboard privilegiado por uma animação suave de ação clara e lúcida, sem efeitos mascarados. Particularmente o frame em que ela tira seu chapéu e o atira no criminoso é toque elegante que demonstra sua desenvoltura física, que a despeito de sua aparência frágil, é flexível e ágil. O melhor de tudo é se tratar de uma ação inteligente, que não contradiz a estruturação visual da personagem, mas utiliza dos seus aspectos fracos como uma vantagem. A partir deste ponto, Kino só cresce aos meus olhos. Além disso, essa cena traz a tona uma Kino que também sente medo, treme e teme diante situações de perigo. Não importa o quão forte um personagem consegue reagir a uma situação inesperada. Retratar o pós de um modo que evoque emoções humanas reais só faz o personagem se tornar mais substancial.

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