“Muito interessante, não? A maneira como alguém expressa alguma coisa... Outra pessoa sempre aparece para interpretá-la.” – Diz Kino ainda no inicio do episódio, após contemplar o céu estrelado ao lado de sua fiel moto senciente Hermes, estirada em um largo campo verde sentindo a liberdade invadir os seus poros.
“Às vezes, viajantes se tornam poetas, Hermes”, ela retruca sua indagação referente ao olhar vago que exibia. Viajantes são expectadores, talvez os melhores cronistas do mundo. Sob seus olhos, registram-se um retalho de fragmentos vividos e presenciados, sem nunca deixar de ser isto: fragmentos. Se pega a história pelo meio, em andamento, sem presenciar o inicio ou o seu desfecho.
Nesse sentido, Land of Prophecies nos oferece o argumento mais poderoso de Kino no Tabi até então, repleto de ironias sutis, em meio ao torpor filosófico e as referências a respeito de crenças religiosas que permeiam um episódio dividido em três atos de peças insinuantes, que se interligam tematicamente entre si, trazendo à tona a moral da história.
As pessoas estão sempre à procura de significado, acrescentando profundidade para até mesmo o mais abstrato dos escritos e ações, transformando isso em rituais e tradições, regras paradoxos sem fim. Neste episódio, Kino passa por três países com diferentes tradições.
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Começando com uma terra cujo livro de profecias afirma o fim do mundo para a manhã seguinte. Como o fim não vem, as pessoas que se desprenderam de seus bens começam a se desesperar por estarem vivas (!!). Tudo parece se acalmar quando um segundo homem santo, tranquiliza a todos dizendo que seu colega fizera uma leitura errada das escrituras e que o verdadeiro fim do mundo só virá dali a 30 anos. Os cidadãos parecem aliviados, apesar de tudo. Precisam continuar acreditando, ou o país se tornaria um caos incontrolável. Neste país, fica claro um sentido de culto mais cristão. Sua tradição é religiosa.
No segundo, Kino se vê numa situação inusitada. Um país onde o povo está em busca de uma tradição própria, após seu rei ter sido deposto. Então, a cada novo viajante que passa por ali, eles criam uma nova tradição, a fim de fazê-lo participar. Caso isto não ocorra, eles precisam encontrar uma nova forma de tradição. A ironia fatalista está no fato de que eles sequer perceberam que a melhor tradição que possuem é exatamente essa, mas se caso percebessem, esta provavelmente desapareceria, uma vez que tomariam consciência da tolice que tem sido tudo aquilo.
Finalmente, no terceiro, Kino vai parar num país que é uma espécie de Veneza. Todos os cidadãos deste lugar parecem deprimidos e desolados, com a cidade circundada por uma espessa nuvem melancólica de lamentos sem fim, devido a uma leitura constante de um poema triste. Muitos anos atrás, o maior poeta na terra nasceu ali e dedicou parte da sua vida a escrever poemas felizes que deixavam as pessoas leves e contentes. Como naquele país as pessoas não sabiam o que era ser triste, gozando uma vida plena de satisfação e felicidade, o rei ordenou que escrevesse um poema de tristeza, ou ele seria morto em 19 dias. O poeta puxou toda sua inspiração, mas com um espirito tão feliz e satisfeito, que jamais na vida conhecera outro sentimento, não sabia como expressar qualquer forma de lamento. Na véspera do último dia, sua esposa se matou como um sacrifício pela sua vida, para que ele pudesse sentir e compreender a tristeza, e assim transformá-la em poesia.
E assim o poeta recitou o poema triste, mas embora ninguém pudesse compreendê-lo, seu efeito foi terrível sobre as pessoas, com o poeta sendo escoltado para fora do palácio e o rei se retirando nauseado para seus aposentos, com medo da imensa tristeza que emanava daquelas palavras. Poucos dias depois, o rei morreu e o poeta continuou a andar e recitar seu poema por onde passava, cobrindo o país em tristeza, com sua pequena filha o seguindo a todos os lugares. Anos mais tarde, o poeta morreu, no entanto, sua filha – de 14 anos de idade – começou a recitar o poema de novo e de novo, para os próximos 10 anos, envolvendo ainda mais o país na miséria e profunda depressão, e desde então, tem sido a tradição do país para escolher uma garota de 14 anos com a melhor voz a cada 10 anos e para recitar o poema constantemente, todos os dias.
É um conto impressionante com uma moral arrebatadoramente simples, mas atordoante, em relação a mais primitiva necessidade do homem, que é o sentir, a partir da sua essência primária. Se Adão não pôde se conter frente a uma saborosa maçã vermelha que continha em si o fruto de todo o conhecimento que eles jamais sonharam, o homem não se sente plenamente realizado até que consiga compreender aquilo que lhe foge a razão. É neste sentido que a fé/crença se manifesta. O mais irônico deste episódio, é aquele país continuar com uma tradição tão desgastante emocionalmente por simplesmente ter se tornado um ritual passado de geração para geração.
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Desta forma, ambos os episódios se interligam no sentido de que a crença para existir, deve ser tomada por uma fé cega, do contrário, o que há não será mais do que indagações. É possível perceber um certo teor critico no sentido de as pessoas não questionarem certos ritos e tradições, mesmo que de efeito maléfico sobre a sociedade, como se fosse algo intocável e sacro – não importando quanto de sacrifício seja necessário.
“Muito interessante, não? A maneira como alguém expressa alguma coisa... Outra pessoa sempre aparece para interpretá-la.”
Este poético e brilhante episódio, mas de storyboard sem elevações, termina em um tom agudo de staccato. Um dos cidadãos do terceiro país disse que o poema uma vez foi escrito em um livro chamado o Livro das Profecias e tornou-se muito popular em um país distante, o primeiro. Que agora está prestes a ser bombardeado e extinto do mapa por outra nação, que leu o tal livro de Profecias e interpretou que era preciso destruir aquele país. Hermes então pergunta à Kino se a profecia enfim se tornou realidade ou a profecia fora interpretada novamente erroneamente? Kino dá de ombros e joga a questão para o esotérico universo estelar.
O primitivo e o folclórico se misturam na gênese humana de tal forma que se tornam indissolúveis, como criaturas naturalmente espirituais que somos. Desta intrínseca essência nascem os maiores equívocos da humanidade sob o efeito da miopia. O ser humano tem pavor de pensar que está só por si mesmo, e incondicionalmente acreditam numa força arrebatadoramente cósmica. Nesse sentido, o tradicionalismo é simplesmente uma face desta sociedade coletivista, que por mais que se feche dentro de si mesma, reservando a cada pessoa um universo único e intocável, sua necessidade de formar um grupo e estabelecer um contrato social é tão necessária quanto paradoxal. É ai que a verdade e a mentira se tornam duas linhas tênues prestes a se fundirem e confundirem. Esse o ponto que incide sobre Kino, que mantém um silêncio sábio, afinal, cada um interpreta do seu próprio modo.
Exibição Original: 22 de Abril de 2003
Episódio: 3
Storyboard: Ryutaro Nakamura
Diretor de Fotografia: Naoyuki Ohba
Diretor de Animação: Fumio Matsumoto
Diretor de Fotografia: Naoyuki Ohba
Diretor de Animação: Fumio Matsumoto
Diretor: Ryutaro Nakamura
Diretor do episódio: Kooji Kobayashi
Roteiro: Sadayuki Murai
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