Mamoru
Hosoda fascinava por seus filmes com premissas simples que ganhavam um
desenvolvimento muito mais profundo do que poderíamos esperar. Foi esse o caso
das crianças lobos e da colegial que viajava no tempo. Infelizmente, não é esse
o caso de The Boy and the Beast, que conta com uma segunda metade pavorosa que
não condiz com a simplicidade da primeira. Me lembrou muito Hoshi Wo Ou Kodomo,
de Makoto Shinkai, que também foi o único grande erro da carreira deste
diretor. E Hosoda enfim fez o seu.
O
filme nos apresenta ao mundo dos monstros, Juutengai, comandado pelo Grande
Mestre que irá se “aposentar” em breve transcendendo para a forma de um deus.
Ele busca um substituto entre os monstros, e os maiores concorrentes são Iouzen
e Kumatetsu. Eles precisarão lutar um dia pelo título de Grande Mestre. O
primeiro possui aprendizes, o segundo não. É quando o monstro Kumatetsu
encontra o menino do título, Ren, órfão de mãe, abandonado pelo pai, e o convida
para ser seu aprendiz. E assim começa a história.
Contando
com o apuro técnico deslumbrante de seus filmes anteriores, somos presenteados com
uma fotografia inspirada. Em especial no treinamento de Kumatetsu e Kyuuta (novo
nome que o Ren ganha do monstro), com a câmara em posições inteligentes e
divertidas. Acompanhamos o garoto imitando o mestre sem que ele perceba, de
inúmeras maneiras. E conforme o treino se desenvolve, a câmera opta por planos
mais diretos, realçando a grandeza e crescimento deles.
O
filme ainda conta com a perspectiva costumeira de tirar o fôlego de Hosoda,
seja nas multidões gigantescas do Japão, nas bicicletas estacionadas (planos bem semelhantes
foram usados em Wolf Children), ou fazendo a câmera girar 360º acompanhando a
visão de Ren/Kyuuta.
E os
elogios irão parar por aí, infelizmente. Assim como ocorria no já citado filme
do Shinkai, Ren/Kyuuta se surpreende muito pouco ao entrar no Beco Diagonal
(pois é) e passar a viver com monstros. Chihiro definitivamente reagia como uma
pessoa normal. E a personalidade do garoto é muito difícil e explosiva,
embalada por um melodrama de flashback que dura 2 minutos sobre os parentes que
ficaram com sua guarda. Pior ainda são as visões que tem de sua mãe morta.
Acontece duas ou três vezes e não chega a lugar nenhum, é só jogado ao acaso.
Chegamos,
enfim, a fera Kumatetsu e sua personalidade... exatamente igual a do menino. Não
sabendo criar a dinâmica do mestre-e-aprendiz-que-brigam-mas-se-amam,
fartamente usada em Naruto e Jiraya, Piccolo e Gohan e outros, os dois são
extremamente aborrecidos. E sempre que parece que haverá a construção de um
sentimento mais bonito e calmo entre ambos, voltam a gritar um com o outro e
correr pela rua. Pode até soar engraçadinho na primeira vez, mas depois da
sétima já é insuportável.
O
arco dramático deles, aliás, é inexistente. Eles se conhecem brigando, passam o
filme brigando e terminam o filme brigados (exceto nos últimos vinte minutos).
Não parece haver um crescimento ou amadurecimento nem por parte do adulto da
relação. A única mudança é Ren ficando um pouco mais sério adolescente, óbvio.
Mas deveria ser igualmente óbvio constarmos a diferença na relação deles 9 anos
depois (!!!). E simplesmente não há.
Pior
que o “desenvolvimento” dos personagens principais, só o dos secundários, na
segunda metade do filme. Jogando ás pressas Kaede, namorada do protagonista,
ela é completamente apagada. E já começam se conhecendo no clichê do mocinho
salvando a mocinha. E depois segurando a mão dela e correndo (ninguém viu o
novo Star Wars, não?). Meu deus. Atropelando em meio a isso, Ren/Kyuuta decide
ir atrás de seu pai biológico, que obviamente não ganha um pingo de
desenvolvimento, e de uma cena pra outra já estão brigando. Idem com a
namorada. Tudo acontece de forma abrupta demais, intercalando entre moça e pai
que jamais deveriam ter sido introduzidos aí, pois atrapalharam completamente a
relação do mestre a aprendiz.
Aliás,
já dava pra notar algo muito errado na direção de Mamoru Hosoda quando mestre e
aprendiz vão visitar outros mestres no mundo dos monstros. E o salto de um
mestre para outro é tão súbito e confuso, houve momentos que eu pensei até que
era um sonho de alguém. Esse tour, entretanto, não leva a lugar nenhum, nem
planta qualquer semente que poderia ser usada futuramente. É um gigantesco
filler ali no meio.
Porém,
os problemas da direção não param por aí. Se em Wolf Children o diretor
conseguiu um travelling horizontal fabuloso para mostrar o desenvolvimento das
crianças na escola e a passagem dos anos, aqui eles são pobres e
desinteressantes. Uma vez para salvar a mocinha, com a ação ocorrendo fora da
tela; e outra quando encontra seu pai pela primeira vez e fica uma confusão de
personagens fora da tela idem. Travellings horizontais são bem difíceis de se
utilizar de forma eficiente, e Hosoda simplesmente não foi bem sucedido em suas
tentativas aqui.
E o
que dizer da visão subjetiva das câmeras de segurança na rua? Utilizadas primeiramente
no início do filme, sugerindo um possível observador e/ou ameaça, só aparecem
de novo ao final do filme. E não trazem recompensa nenhuma, só uma maneira que
Hosoda pensou em enquadrar e que só causa distração sem propósito narrativo
algum.
Mas
voltando aos problemas de roteiro. Por que o monge porco se juntou a eles para
sempre? No início, Ren e ele pareciam ter se encontrado na rua completamente ao
acaso, sem ligação com Kumatetsu. E o macaco amigo da fera, quem é? A primeira
vista, ele quem parecia um aprendiz. Seu desenvolvimento é nulo, como o do
monge. São completamente desperdiçados. E o Beco Diagonal entre o mundo dos
monstros e humanos estava sempre aberto? E Ren só decidiu espiar o outro lado
depois de... 9 anos?!
O
mundo dos monstros, aliás, é extremamente mal desenvolvido (mas tinham que dar
espaço pra namorada, pai adotivo, e aquela aberração de vilão no final). E
deveria justamente ser a parte mais interessante. Não conhecemos direito
Iouzen, nem o Grande Mestre. Não entendo se o macaco ou o monge precisam
trabalhar. Ou o Kumatetsu. Como funcionam as coisas, o cotidiano, os trabalhos,
aquele bairro, cidade, enfim. É igual o dos humanos? Não tem como saber. Eles
prezam bastante a dinâmica de mestre e aprendiz, mas numa trama em que viram
deuses, é estranho demais só lutarem com socos. As lutas não ganham maior peso
e sequer soam importantes. É surreal que o destino do mundo Juutengai seja
decidido de forma tão burocrática e pobre.
Com
um final absolutamente pavoroso em seu vilão que tira todo o foco e
desenvolvimento dos personagens títulos, foi um ato desesperado da produção do
filme. Talvez querendo traçar paralelos pobres com Moby Dick (“O capitão estava lutando contra si mesmo!”...
mas não é bem assim, é a luta do Homem contra a Natureza, não deturpem essa
obra-prima que eu sou apaixonado!). Assim, Ren estaria também lutando contra si
mesmo naquele vilão? Ou Ren contra a fera do título é que se encaixam na frase?
Ou Kumatetsu e Iouzen quem estão lutando contra si mesmos para serem o Grande
Mestre? É difícil estabelecer uma lógica para essas ideias bagunçadas atiradas
de qualquer jeito na trama.
De
qualquer modo, assim como Shinkai voltou aos trilhos no filme seguinte com
Kotonoha no Niwa, tenho total confiança de que Mamoru Hosoda se recupere no
próximo. Os seus trabalhos anteriores são maravilhosos demais para serem
apagados por uma ovelha negra dessas.
(Para mais dos meus textos, é só ir no menu Crítico Nippon)
Twitter: @PedroSEkman
resenha, análise, comentários, review, crítica, anime filme, Bakemono no ko, criaturas e humanos,
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