Olá, bem-vindo ao país sem rosto, Japão!
"Há pouquíssimo tempo, muitas pessoas tiraram suas próprias vidas simultaneamente. Deve ter sido muito chocante. Quando alguém morre repentinamente diante de seus olhos, você se lembra de como é o medo. Nós fizemos isso. Como, você quer saber? Isso é um segredo por enquanto. Já colocamos raízes profundas em seus cérebros, e vocês não podem arranca-las. Todos vocês são agora nossos reféns. Assustador. Irritante. Vocês devem estar sentindo todos os tipos de emoções agora. Essas emoções são reais. Por favor, aprenda a apreciá-las. Nós vivemos em uma sociedade onde tais emoções devem ser suprimidas. Não está escrito em nenhum livro. Não é uma lei. Você pode simplesmente sentir isso no ar. Você sabia que as taxas de suicídio entre crianças estão subindo? Todo mundo está fugindo da realidade. Vamos fazer um novo mundo. Esta é uma declaração. Para isso, devemos primeiro escolher pessoas capazes. Dentro do tempo de uma semana, vocês precisam matar mais de uma pessoa. Podem usar o método que quiser. Se isso beneficia você, prova que não se preocupa com o 'bem-estar' dos outros"
Ao se ouvir a ameaça terrorista que assola o universo de paz utópica em Harmony, tem-se a impressão de que Makishima Shougo é a mente ardilosa por trás deste ataque. Aliás, a questão filosófica em relação ao livre arbítrio de sentir e ser frente a uma sociedade que consegue controlar até os pensamentos dos seus cidadãos, que permeia o filme, é uma filosofia bastante compartilhada em Psycho-Pass e Jouka no Monshou, ambas obras distopicas de Gen Urobuchi.
Em Harmony, aqueles que não conseguirem matar o seu próximo, serão levados à morte por um instinto incompreensível ressoando na mente. Essa é a força motora do segundo filme da trilogia promovida pelo bloco NoitaminA, da Fuji TV; a de que aqueles indivíduos já não possuem controle nem sobre a própria mente. É a máxima distopica contrastando o branco virginal da sonhada utopia.
Mas, para compreender isso, antes é necessário conhecer a premissa básica, que conta uma história que se passa numa sociedade utópica onde a ciência da medicina e bem estar evoluíram a um nível inimaginável, quando a cinco décadas atrás o mundo sucumbira a uma guerra nuclear levando-o a um período negro de doenças. O intervalo politico entre países diminui com a implantação global do sistema de adaptação mental WatchMe capaz de monitorar todo o corpo, controlada pelo Admedistration, instalações onde a nanotecnologia é utilizada no corpo das pessoas para fins médicos, permitindo uma hipotética vida melhor. Tudo, desde a nutrição ao exercício da emoção e excitação, é regulada e vigiada por uma rede de agências, cujo objetivo é garantir a harmonia (leia-se: a homogeneidade) entre povos, mentes, ciência e tecnologia.
Conceitualmente, é bem interessante, especialmente por ser possível verificarmos esses efeitos na vida média dos personagens e seu ambiente social, que vivem em um estado de contínua boa integração com os demais, onde a educação e empatia para com o próximo independe do grau de relacionamento. É um mundo realmente perfeito, tão perfeito que tudo soa plástico e artificial – dos sorrisos das pessoas nas ruas sempre bem humorados aos seus próprios corpos dominados por nanomáquinas, que os fazem soar como ciborgues.
Frente ao que parece ser o sonho idealizado de todo pacificador entoando Imagine do John Lennon, o desconforto em tal sociedade deve ser capaz de alcançar o espectador do outro lado do monitor para que se possa compreender a insatisfação sentida nas amigas Tuan Kirie (Miyuki Sawashiro), Miach Mihie (Reina Ueda) e Cian Reikado (Aya Suzaki), que protagonizam uma tentativa de suicídio entre elas como forma de protesto numa tentativa de acordar a sociedade para o que elas considerem ser um estado controlado por empresas. Porém, a tentativa acaba sendo frustrada e apenas Miach morre, deixando Tuan e Cian em uma vida de culpa e tormentos internos.
O tempo passa, e Tuan se torna uma mulher adulta, inspetora da Organização Mundial de Saúde, a nova força militar do mundo, vivendo sempre um país e outro, pulando de conflitos em conflitos, no que seria uma espécie de fuga do passado. No entanto, ao contrabandear bebidas, um ato criminoso no novo estado, ela é temporariamente detida em uma prisão domiciliar – embora seu crime seja omitido da sociedade – que consiste em voltar para sua terra natal, o Japão. Tuan então se vê confrontada com o fantasma de Miach lhe fazendo sombra a cada esquina e pensamento, e uma ameaça terrorista sem precedentes provocando uma distopia fatal naquele mundo perfeito.
***
Harmony é adaptação de um romance premiado e bem elogiado por aqueles que o leram, de autoria do falecido autor Satoshi Itoh, que escrevia sob o pseudônimo de Project Itoh, dada a natureza de ficção cientifica de suas obras. Tanto que Genocidal Organ e Harmony compartilham um universo comum, embora sem links diretos – compreende-se que Genocidal Organ remonta o que seria a pré-história de Harmony, antes de sua sociedade atingir o apogeu cientifico.
Parece incrível, depois desta minha longa introdução, mas Harmony é um filme completamente desprovido de senso de narrativa visual e efervescência; é apático em sua essência, já que mesmo a ínfima ação física (o ato do corpo se mover em cadeia comportamental) não passa de uma tentativa da direção em sobrepor vida e pulsação a um cadáver totalmente inerte; o único momento em que realmente se vê uma direção de ação pensada unicamente no escopo visual da cena é nos primeiros segundos do longa – e mesmo ali, já se nota uma heroína submersa em recordações do passado e dilemas existenciais que permeiam as longas 2 horas de puros diálogos expositivos.
Cada encontro, cada contato e lembrança de Tuan nada mais é do que a transcrição complexa do romance original lidas por dubladoras. Carece qualquer coisa de humanidade e pessoalidade. São informações pesadas e diálogos grossos que tornam desnecessariamente confusa uma trama extremamente simples. O que talvez seja o maior charme em um livro, se transforma num fardo em uma adaptação audiovisual. Assim, reiterações filosóficas num espaço curto de tempo que compõe todo o filme fatigam em um vício de roteiro extremamente pobre.
Mesmo o romance entre as namoradinhas Tuan e Miach, que no fim das contas é o foco da narrativa e dos pensamentos da heroína, sofre por uma direção e storyabord que não consegue fazer isso explodir na tela. E por mais que haja estímulos, tudo soa bastante plástico e impessoal – ainda que este seja o caráter do pseudo-romance, a desarticulação o torna opaco e sem graça. Tanto que ao fim, a esperada explosão climática foi de uma mediocridade sem tamanho, fracassando tanto na frente romanesca quanto na caracterização ambiente. Provavelmente o que melhor se extrai de Harmony são os comentários sociais que refletem na própria realidade japonesa, mas até isso se torna difuso em meio à bagunça da adaptação do roteiro.
Há coisas belas em Harmony, mas sempre desfragmentadas, nunca um todo. Dirigido por Takashi Nakamura (diretor de animação e character design em Akira, entre outros trabalhos como animador) e Michael Arias, americano residente no Japão que se tornou o primeiro americano a dirigir uma animação japonesa em Tekkonkinkreet de Taiyo Matsumoto (Ping Pong), ele é conhecido por trabalhar com software de animação e experimentação de CG. Em Tekkonkinkreet, se tornou notório a possibilidade de um belo casamento entre as técnicas de CG e 2D.
O studio 4Cº que experimentou uma nova técnica na trilogia de filmes Berserk, é mais contido desta vez com o auxilio de Arias que promove a integração de uma computação gráfica com o desenho tradicional, chegando a animar completamente em computação gráfica determinadas articulações de personagens. Há muitos movimentos de câmera e ângulos de layout que seria muito mais difícil de se alcançar através da técnica tradicional (levando em conta o tempo e o orçamento disponível para contratação dos profissionais capazes de realiza-las). Alguns momentos são particularmente bonitos e ousados, mas embora esteja longe do desastre que foi em Berserk, também está muito distante de uma agradável harmonia entre CG e 2D, o resultado global acaba sendo um tanto insatisfatório.
É o que se pode dizer sobre Harmony, que ironicamente não é harmônico em tudo.
Nota: 04/10
Fonte: Adaptação (novel)
Estúdio: Studio 4°C
Direção: Michael Arias, Takashi Nakamura
Roteiro: Koji Yamamoto
Musica: Yoshihiro Ike
Character Design: redjuice
Diretor de Arte: Kiji Shinbayashi
Diretor de Animação: Takahiro Tanaka
Diretor de CGI: Yusuke Hirota
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