Havia
tanto para se abordar em meu primeiro texto de Avatar, aspectos técnicos,
visuais, desenvolvimento de personagens, cuidar para não conter spoilers na
primeira parte, que ficaria demasiado longo se este aspecto da obra fosse
explorado também. Qual aspecto? O mais profundo da obra, que são os
significados e símbolos implícitos nela, plantados com preciosismo pelos seus criadores.
E apesar de não ser fundamental notá-los, a história ganha uma riqueza ainda
maior uma vez observados. Aliás, é fascinante notar a teia de simbolismos que
envolvem não apenas personagens, mas situações antagônicas e similares, ecos ao
longo da narrativa e pequenas brincadeiras visuais que comprovam as intenções dos autores.
(Spoilers por toda parte)
Em primeiro lugar, é evidente
a diferença de tons entre as três temporadas d'O Último Dobrador de Ar. A paleta de cores do desenho é
radicalmente diferente na primeira e na terceira. Começa com cores alegres e
leves, remetendo ao Ar e a Água. E termina na do Fogo, o oposto, na mais
absoluta imersão na escuridão escarlate, com episódios sempre a noite, em
túneis escuros, câmaras e palácios ameaçadores. Já a temporada do meio é da
Terra, elemento intermediário entre todos e com um tom nem tão leve quanto a
primeira, nem tão sombrio quanto a última. É a ponte que faz a fluidez perfeita
e gradual entre uma e outra, do contrário, seria forçado demais. Além do mais,
a transição se reflete na mudança interna dos personagens, e ninguém muda de
uma hora pra outra.
E mais! Tem que lembrar que
Avatar conseguiu parar cedo. Ainda que fosse sucesso absoluto, eles decidiram
parar. Aqui, tentarei justificar como isso claramente foi planejado desde o
princípio e com todo o cuidado. É o início, o meio e o fim da uma história, não
um caça níqueis. Alinhando essas três temporadas, podemos formar um círculo,
com raio e diâmetro. É um dos símbolos mais antigos e comuns da História da
humanidade. Ele pode ser encontrado em literalmente todas as culturas e eras do
mundo, e possui vastos significados. Círculos podem ter diversos conceitos,
como um todo, uma união, a eternidade (já que não possui início nem fim), o
ciclo da natureza com um elemento ligado ao outro (ó, estamos chegando lá), e o
próprio ciclo da vida, morte e renascimento (em suma, o conceito do Avatar em
si).
Segundo Joseph Campbell e seu
Monomito (ou Jornada do Herói), isto trata-se do caminho cíclico presente em
diversos mitos, representada em três estágios: Partida, Iniciação e Retorno. Coincidentemente
(hum) o mesmo número de temporadas de Avatar. Tudo se encaixa perfeitamente.
Tio Iroh, em um dos episódios
mais belos de Avatar, explica a Zuko a relação entre todas as tribos e seus
elementos. Essa relação é feita através de círculos desenhados por ele no chão,
mostrando a correlação entre todas as nações e a importância de se dar o devido
valor ao conjunto. Zuko, naquela fase, era preso à grandeza da Nação do Fogo e
não enxergava o potencial de desenvolver qualidades das outras tribos.
Um dos mangás com o
desenvolvimento, filosofias e questões da natureza em torno dos personagens,
mais semelhantes a Avatar certamente é Shaman King. E não a toa, é uma de
minhas obras orientais favoritas de todos os tempos, certamente em um Top 5. Há
um momento chave na primeira luta dos vilões no Shaman Fight que poderia
perfeitamente ter saído de O Último Dobrador de Ar. Fogo cria terra, terra cria metal, metal cria água, todas são reações da natureza. E colocando-os de uma
forma cíclica (olha o círculo aí de novo), trata-se da criação dos elementos: água
cria madeira, que alimenta o fogo, que dá origem à terra, que dá origem ao metal, que cria água. “Quem conseguir manipular esses 5 elementos poderá entendê-los
e manipulá-los à sua vontade. Essa é a habilidade do mestre Yin Yang, Hao
Asakura”, fala Mikihisa. E como Hao alcançou esse poder? Reencarnando em longo
de mil anos. O conceito do Rei Xamã é uma premissa absurdamente parecida com o
conceito do Avatar.
E eis que chegamos ao símbolo
mencionado em SK em forma de círculo que, narrativamente e simbolicamente,
absorve o conflito sem fim entre o bem e o mal que existe no mundo e,
primariamente, em todos nós. Um círculo perfeito dividido em dois iguais, porém
opostos – claro e escuro – que sempre correlacionados e eternamente interagindo
um com o outro, formam um todo maior que suas partes individuais (o discurso do
tio Iroh se encaixa aqui, ele ignora estar do lado bom ou ruim e tenta ensinar
como o todo é mais importante). Yin Yang, símbolo taoísta, duas forças
fundamentalmente opostas. Yin, da inscrição chinesa, “lado sombrio da colina”,
geralmente associado com trevas, energia feminina, a noite, descendente,
aspecto negativo da natureza, entre outras associações. E o Yang, da inscrição
chinesa “lado claro da colina”, geralmente associado com luz, energia
masculina, o dia, ascendente e aspectos positivos da natureza.
Não a toa relacionam o
sacrifício da lua à figura de Yue, feminina, na primeira temporada. E o cometa à
figura de Ozai, na última. Por que não na temporada do meio? Por que não
trocando o masculino pelo feminino no sol e na lua? Porque não fecharia com o
símbolo do Tao, obviamente. Os dois lados da mesma equação, conceito quase
universal nas religiões. Opostos e, paradoxalmente, complementários. Um não
pode existir sem o outro. A sombra não existe sem uma luz e a claridade nunca
seria distinguida sem a escuridão. E como cada metade contém um pequeno círculo
do seu oposto, a bolinha branca no preto e a bolinha preta no branco, tudo está
inter-relacionado e não existe nada absoluto. Nada inteiramente bom nem
inteiramente mal. Como, por exemplo, tio Iroh e outros mestres do Fogo que
destaquei na minha crítica, absolutamente admiráveis e bondosos. E soldados e
professores extremamente cruéis da Terra e da Água.
Assim, Aang tem seu clímax de
batalha tomado pelo desejo de exterminar o Senhor do Fogo, mesmo que em Estado
Avatar (sua energia Yin tomou conta), ainda que, ao final de tudo, tenha
encontrado a compaixão como todo herói. E como já comentei Star Wars e Avatar no mesmo texto, isso me lembrou também o final de Luke Skywalker enfrentando
seu pai e, contrário aos incentivos de Obi-wan e Yoda, resolve poupá-lo.
Simultaneamente, Zuko tem a batalha mais difícil de sua vida para proteger
justamente aqueles que passou a série inteira tratando como inimigos (sua
energia Yang tomou conta). Luz e Trevas,
mesmo que temporariamente, estão em perfeito equilíbrio no fim, em uma poderosa
reconciliação de opostos (expresso também na reconciliação do novo Senhor do
Fogo Zuko e Avatar Aang).
O filósofo Alan Watts falou
uma vez sobre esse símbolo universal, de que o principio do Yin Yang não é
realmente chegar a uma “dualidade”, mas mais explicitamente a dualidade
expressa no que chamaríamos de uma “unidade”. Um inteiro. Um único.
Deste mesmo modo, o autor C.
G. Jung já falou muito sobre o símbolo do Tao, que não pode ser traduzido
facilmente como apenas a união de opostos, mas como um Terceiro Caminho ou
Caminho do Meio (Third Way ou Middle Path). Isto é, por isso há uma segunda
temporada intermediária entre as duas da ponta. Já dizia Lex Luthor em
Smallville (desculpa) “O caminho para as trevas é uma jornada, não um
interruptor de luz”. Seria o caminho que unifica o Yin e o Yang, que transcende
o conflito dos opostos. Os conflitos na primeira e terceira temporada são duros
em sua divisão de bem contra o mal, já os da segunda apresentam sempre um meio
termo. Tanto que é nela que se inicia o exílio de Zuko e Iroh definitivo, e
momentos em que ora estão caçando o Avatar e ora estão lutando contra Azula e
cia. Uma indecisão que irá ecoar até o clímax da temporada, com trocas de lado
cambiantes até o último instante.
No livro Rei,
Guerreiro, Mago e Amante, o autor Robert Moore explica sobre esses respectivos
arquétipos dentro de cada um de nós. O Guerreiro está relacionado ao Ar; o
Amante a Terra; o Fogo ao Rei e o Mago a Água. Tal método e divisão já foi
amplamente estudado em suas variações de nomes (alguns podem variar para
Curador, Mestre, Visionário...). Essa inteireza do ser como uma unidade pode
ser personificada na figura representante do próprio Avatar. E inúmeros povos e
rituais de passagem (eu mesmo já passei por um rito desses num processo ao
longo de um ano) buscam essa inteireza e seguem a risca essa divisão e esses
arquétipos.
Deste modo,
podemos pegar exemplos abundantes ao longo de Avatar que refletem essa análise
de dualidade e unidade. Das mais óbvias, como as carpas na fortaleza da Água,
uma preta e outra branca, eventualmente elas formam o próprio símbolo. E Iroh,
novamente, se preocupa com a inteireza delas e não em exterminá-las, como um
dos vilões. Ele compreende o valor do Equilíbrio (o tema principal de Avatar)
e, ao final, todos viram o caos que se criou terem mexido nisso. Aliás, o que
ocorreu foi uma micro representação do pandemônio que pode acontecer, já que a
macro representação seria a própria Nação do Fogo tentando subjugar as outras e
abalando o mundo todo, inclusive ela própria.
E se já citei
o contraste do Aang querendo sangue de Ozai ao final, e Zuko abraçando a
bondade arriscando a própria vida, Katara também entra nessa. Se nas primeiras
temporadas ela era responsável por acalmar a fúria destrutiva do Avatar em
diversas ocasiões, na última, assim como seu amigo, ela tem que enfrentar o
próprio lado negro. E o episódio em que para a chuva e a transforma em lâminas
(e dobra sangue!!) é excepcional e assustador, um dos grandes momentos do
desenho. Contudo, e assim como seus amigos, consegue encontrar a inteireza em
si no último instante.
Há alguns
conceitos um pouco mais subjetivos nessas representações. Por exemplo, o
próprio rosto do Zuko pode ser uma expressão do Yin e Yang. O lado da cicatriz
Yin, representando a violência, a maldade; e o lado limpo o Yang. Poderia ser
uma cicatriz em forma de riscos, extremamente comum nos animes, mas não, foi
escolhido a forma circular. E justamente no personagem que passa pela maior
transformação de todos, fazendo seu rosto ser a própria imagem de sua dualidade
interior. Difícil acreditar numa coincidência.
Finalmente
chegamos, claro, na dança do dragão. E há inúmeros aspectos nela que condizem
com o círculo e a representação do símbolo Taoísta. Em primeiro lugar, é a
interação de Aang e Zuko, o bem e o mal, pela primeira vez em harmonia, não em
conflito. E como falei nos parágrafos acima, a dança entre eles mostra como
essas duas forças estão “eternamente interagindo uma com a outra”, nunca
individuais, mas como um todo. Os passos da coreografia são feitos para formar
um círculo, até que ambos se fecham. E os próprios dragões ao fundo dançam de
maneira cíclica, e há um momento fabuloso em que eles formam o próprio símbolo
Yin Yang com a ajuda da bolinha do Sol ao fundo. Foi colocado de forma sutil,
mas extremamente apropriada para esse momento fabuloso e significativo.
Deste modo, é
possível constar inúmeros episódios que tratam dessa dualidade e reforçam a
ideia de que ninguém é inteiramente bom nem mal. Exemplos como os do jovem Jet
e seu impulso selvagem em exterminar inocentes da Nação do Fogo; passando pelo
belíssimo conto da Caverna dos Dois Amantes em uma história de amor entre vilas
que se odeiam; as crianças da Nação do Fogo que são ensinadas mentiras em sala
de aula (como poderiam se tornar adultos diferentes?); o Avatar e Senhor do
Fogo da geração passada, cujo arco dramático vai na direção oposta de Aang e
Zuko (começam amigos e se tornam inimigos), num eco contrário e cíclico e
antagônico que encaixa com tudo que já foi abordado aqui. Assim, quando Mai e
Ty Lee traem Azula, torna-se aceitável e natural justamente por estarmos
acostumados com personagens humanos, de várias facetas e com capacidade de
evoluir na trama. Em suma, o desenho busca questionar todas as frentes
possíveis, não transformando ninguém em estereótipos vazios, tornando a análise
extremamente rica.
Em suma, O Último
Dobrador de Ar é um entretenimento adulto de primeira, planejado com cuidado,
repleto de referências profundas e significantes. É uma obra ambiciosa que
explora ao máximo os conceitos que movem aquele universo e seus personagens. E
se foi possível abordar inúmeros itens nesta análise, o mérito é todo da obra
que proporciona discussões como esta. E que prazer imenso quando encontramos um
trabalho tão extraordinário.
Twitter: @PedroSEkman
(para mais dos meus textos, é só ir no menu Crítico Nippon)
Referências:
http://www.ldolphin.org/YinYang.html
https://books.google.com.br/books?id=ydKjCwAAQBAJ&pg=PA47&lpg=PA47&dq=c+g+jung+yin+yang+third+way&source=bl&ots=wi728MPuXO&sig=wLxVmgWtlGxYh0s8C460kmjMHW0&hl=en&sa=X&ved=0ahUKEwjLvLON6JDMAhXETZAKHcqMDQkQ6AEIHDAA#v=onepage&q=c%20g%20jung%20yin%20yang%20third%20way&f=false
https://en.wikipedia.org/wiki/Yin_and_yang
https://pt.wikipedia.org/wiki/Monomito
http://www.starwarsringtheory.com/
http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/c8953a56c0dbd493c5c100c445412787.pdf
https://grupopapeando.wordpress.com/2011/01/23/a-sombra-nos-arquetipos-do-masculino-maduro/#more-2919
crítica, resenha, análise, review, comentários, estudo Avatar
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