Sarusuberi: Miss Hokusai (2015) – Uma Pintura Ukyio-e da Edo Antiga

O filme retrata uma estação da vida e Keiichi Hara novamente parte da perspectiva familiar para um drama leve e emocional em um ritmo narrativo bastante japonês. 

Miss Kokusai é o mais recente filme de Keiichi Hara (Colorful), adaptado do mangá semiautobiográfico da mangaká e pesquisadora histórica, hoje falecida, Hinako Sugiura, que se debruçou sobre o mítico período Edo (1603–1867) – era japonesa rica em cultura, romancismo, arte e tradição – para contar a história de um dos maiores artistas de ukiyo-e (dica: Bloody Ukiyo-e De Yoshitoshi à Suehiro Maruo) do período Katsushika Hokusai (Yutaka Matsushige), e da sua misteriosa filha O-Ei (Anne Watanabe), do qual pouco se sabe, mas acaba assumindo naturalmente a posição de principal protagonista no mangá da quadrinista. 

A história para nós começa em 1814, na cidade de Edo (que mais tarde seria renomeada de Tóquio), durante o verão, com O-Ei introduzindo seu pai, figura excêntrica, referindo-se a ele como um artista louco, referência ao apelido que ganharia mais tarde, algo como “velho louco pela arte”. Isso se deve porque Tetsuzo, forma pelo qual O-Ei chama seu velho pai Katsushika Hokusai, é perfeccionista e tem lá suas excentricidades, como no belíssimo plano que abre a sequência posterior – um God’s Eye View inteligentíssimo, onde observamos oniscientemente de cima o artista trabalhando em uma enorme folha (série de tatâmis justapostos) ilustrada com Shodo (caligrafia. Dica: Barakamon é uma série que trata sobre este tema). Já no take seguinte, vemos toda sua genialidade aflorada ao pintar um Shodo em um grão de arroz, em um enquadramento fechado que vai se abrindo para nosso esplendor. 

O-Ei vive com seu pai, mas ela é muito mais do que sua assistente. Ela também é de certa forma, sua pupila e uma grande artista, embora àquela altura, ainda incompleta – o que se torna um mote recorrente no enredo e o seu pilar central que vai nortear a direção da história, uma vez que O-Ei precisa além de se desvencilhar das sombras e influencias de seu pai, também assumir uma identidade própria e o refinamento de uma carpintaria ainda inexperiente, apesar de extremamente talentosa. 

Isso coincide em uma das cenas mais interessantes e estimulantes do longa, quando ferem o seu orgulho devido à sua fragilidade em retratar homens em suas pinturas eróticas, embora retrate mulheres como nenhum outro artista do período – O-Ei depois de várias cutucadas do seu pai e editor de publicação (ou o que seria uma espécie de editor), sente seu orgulho totalmente devastado quando o homem a quem admira romanticamente elogia seu rival; ela saí em disparada na chuva e vai parar em um bordel, em que homens se travestem de gueixas. A cena, de ambos no quarto, é inteiramente rica em suspense e curiosidade, traduzida nos trejeitos dos personagens sem perder a sua leveza em diálogos; estes que por sua vez tratavam de imediatismos banais à vista dos olhos, uma verdadeira pintura em se tratando de delicadeza cênica e de mise-en-scène em animes. Momento raro. 

Mas, embora O-Ei tenha auxiliado seu pai em diversos trabalhos, e sido autora em outros sem nunca ser creditada em vida por isso, ela era filha não reconhecida de Hokusai, que muito ajudou seu pai na realização de suas obras especialmente durante os seus últimos dez anos, em que ele ficou paralisado. E é precisamente no final de sua carreira, que ele assinou algumas de suas obras mais famosas, como “A Grande Onda de Kanagawa” – uma de suas obras mais icônicas. Quase 10 obras estão agora atribuídas a Katsushika O-ei, que desapareceu misteriosamente dos arquivos e da comunidade artística depois da morte de seu pai em 1849.

Hara retrata a vida dessa jovem O-ei com uma sutileza de artista plástico. Desconhecida e talentosa, um pouco solitária, rude e rabugenta como o pai, ela é vista sempre o auxiliando e lhe fazendo companhia – em uma cena, ela sugere ir morar com sua mãe, que lhe indaga que seu pai precisava de sua companhia. Ela rechaça a ideia, mas fica subtendido a compreensão de ambas as partes desta tarefa, que nunca se fala se é árdua ou não, ainda que se torne evidente. Em outro dado momento, O-Ei estraga a pintura do pai, que já estava pronta para ser entregue naquele dia; e como todo artista genioso, se recusa a fazê-la novamente em tão pouco tempo, mas o prazo é para o dia seguinte e os requerentes são poderosos, então a própria O-Ei refaz magistralmente a pintura do dia para a noite, como o próprio pai, em uma sequência efervescente. 

A impressão é que O-ei assimilou completamente seu pai, e este sendo o conflito motivacional do longa-metragem, seu desenlace pode ser um tanto dúbio e anticlimático. Responde pelo maior ponto de ruptura na coesão narrativa de Hara, mas tem bastante relação com a história real da artista, que se mistura com a de seu pai ao ponto dela até hoje ser considerada um enigma imapéavel, tendo desaparecido dos circuitos da arte após sua morte sem deixar rastros. O-ei era uma mulher japonesa, na forma como é retratada no filme, muito a frente de seu tempo, moderna para os seus contemporâneos, geniosa de temperamento forte, ela agia livremente e por vontade própria, mas parecia incapaz de se distanciar do pai – talvez pelo fato de ter apenas ele, já que mesmo sua mãe não é sua progenitora (Hakusai foi casado algumas vezes e teve 5 filhos; 2 homens e 3 mulheres). Os dois se confundem em muitos sentidos, especialmente nos trejeitos comportamentais, o que pode se aferir à criação de O-ei, à figura do pai. 

O-ei é uma personagem sem porto, ainda que paradoxalmente aparada ao seu pai. Na história, temos sua irmã caçula Onao (Shion Shimizu), que parece ser seu eixo de equilíbrio e conexão direta com trivialidades afetivas e demais banalidades do dia-a-dia. É quando O-ei se despe de suas armaduras e abandona as armas e seu pincel, se tornando uma irmã comprometida e atenciosa, como nunca se vê quando se trata de seres humanos. As duas personagens em cena representam em grande parte toda a mágica presente no filme, em um desenho e texto repleto de subjetividade e emoção. Por ser cega, Onao precisa confiar em seus sentidos muito mais do que os outros, tornando-se responsável pela maximização de efeitos visuais e sonoros em cena, seja numa passeio sobre uma ponto com diversos ruídos que fazem ela sentir a pulsividade do ambiente, ou em um campo de neve totalmente silencioso, levando a personagem a sentir-se à deriva em uma enorme escuridão – é um contraponto magnifico que na cena da ponte, a irmã se surpreenda por ela não se sentir atordoada em meio à confusão de pessoas e sons, enquanto se sente visivelmente desconfortável em um ambiente silencioso, onde O-ei por outro lado se sente muito mais a vontade. A subjetividade está no fato de que enquanto sua irmã mais velha pode enxergar, a caçula se guia por seus instintos. Pequenos detalhes que constituem a magia do filme sem precisa ser explicada. 

Dois dos interlúdios mais comoventes se dá com o contato inédito de Onao com um garotinho na neve, onde ela tem a oportunidade de se sentir como uma menina normal. Outro momento é feito de contatos, gestos e caricias maravilhosamente intermináveis entre as irmãs, onde O-ei assume uma postura completamente maternal, de agarrar, colocar no colo, provocar o contato com a pele, fazer cafuné, e dormir juntas. Hara confere um ritmo absolutamente evocativo e delicado em tais cenas, onde a animação minimalista dos gestos submerge a trilha sonora, que passa quase despercebida, embora esteja lá, fazendo belamente seu papel em sem nunca intervir diretamente. 

Há uma certa reação de estranhamento quando começa os primeiros segundos do filme e somos surpreendidos por uma balada de Jrock, em total contraste com uma atmosfera bucólica como a de Miss Houkusai. São as mesmas que se insinuam quando a narrativa ganha ares de correria e freneticidade. Eu não, francamente, dizer se é bom ou ruim. Mas de alguma forma é desconcertante, e não exatamente ruim. Sua presença assimétrica se assemelha ao tom místico que Miss Hokusai assume por vezes, sendo tão pungente quanto o real, e no entanto poder enchergá-lo é um feito raríssimo que apenas privilegiados (e amaldiçoados) podem alcançar. É onde a fantasia se mistura com o mundano. Como quando O-ei imagina um dragão para desenhar, e ele ganha forma e seus efeitos se tornam bastante reais. Ou quando O-ei faz uma obra de ukiyo-e incompleta, e a esposa do dono da obra é atormentada por espíritos em busca de paz, até que seu pai corrige a pintura, lhe dando uma sabia lição. Outro momento sublime é no passei de O-ei com Onao no cais, em que a irmã cega sente com muito mais força e impacto o vento e as ondinhas, é quando a mais velha aproveita para aguçar a imaginar da caçula simulando ondas – ondas essas que se metamorfoseiam n’A Grande Onda de Kanagawa; trabalho mais famoso do pai no qual se suspeita a participação pontual de O-ei. 

Em Miss Hokusai, há esse cuidado com o fabulesco comum do período Edo, sem nunca extrapolar as esferas do imaginário. É algo que consegue se situar perfeitamente entre dois mundos e pontos de vistas interpretativos. Sua fantasia e realismo se equivale àquela presente em Kaze Tachinu, de Hayao Miuyazaki, algo que nunca se sabe ao certo se é real ou sonho. Mas, sem dúvidas, o olhar sob a perspectiva de fantasia é bem cativante à obra. 

É um filme bastante caleidoscópico, reflexo da natureza episódica do mangá, com diversos personagens que rodeiam a vida de O-ei e seu pai, no entanto Hara consegue dar unidade e conectividade coesa à uma narrativa que poderia facilmente se perder. No fim das contas, é como se fosse um rio que leva ao mesmo lugar. Pois todas as tramas de alguma forma ajudam a formar o mosaico que é a incógnita O-ei. Uma personagem fantástica. No entanto, há um único porém que também está presente em Colorful, do mesmo Hara. Carece qualquer coisa de recompensa ao espectador, há um vácuo climático frustrante que não é bem definido, a certa altura, tornando a síntese do filme vazia e anticlimática. É como as animações em 3DCGI no filme, que ora é bem acentuada, ora totalmente artificial – mas nunca em total conformidade com a animação tradicional, cheia de encantamos e que em diversos momentos chega a rivalizar com a de Letter to Momo em seus melhores momentos. Assim, é um filme belo e poético, sutil e harmonioso, mas ainda assim com arestas que impedem a obra de alçar níveis maiores. 

Nota: 08/10
Fonte: Adaptação (mangá)
Estúdio: Production IG
Diretor: Keiichi Hara
Roteiro: Miho Maruo
Música: Harumi Fuuki
Diretor de Arte: Hiroshi Ohno
Diretor de Animação: Yoshimi Itazu
Diretor de CGI: Takumi Endo
Diretor de Fotografia: Koji Tanaka

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