segunda-feira, 13 de junho de 2016

Helena: De Machado de Assis ao Studio Seasons

Gosto muito da sentença de Machado de Assis, ao afirmar que “Cada obra pertence ao seu tempo”, ao pedir a compreensão de um romance como Helena (1876). Se neste tempo em que a obra ganhou revisão ortográfica por seu autor, a obra era vista de soslaio pela grande crítica literária, o motivo não era outro senão seu caráter folhetinesco – romances melodramáticos e rocambolescos repletos de reviravoltas e intrigas voltados especialmente para as mulheres da época, mas também lidos por homens (mesmo porque, assim como Helena, muitos destes foram serializados em jornais da época, motivo pelo qual a estrutura se valer de diversos artifícios para prender a leitura), apesar de folhetins sempre ser estigmatizado pelo patriarcado. Razão pela qual ele declara que cada obra pertence ao seu tempo, aludindo que Helena fora fruto de um outro Machado de Assis, ainda jovem e ingênuo, como se define. Muito embora, considerasse Helena com grande carinho. 
Hoje, mais do que nunca, Helena é preciso ser contextualizado, fruto de um zeitgeist – espirito do tempo – que já não se mantém nos tempos atuais. O conflito de tal obra já não faz sentido para a nossa sociedade contemporânea, nem mesmo alguns artifícios dramáticos utilizados por Machado de Assis. Se não considerarmos isso, e a colocarmos em contraste com outras obras do autor, Helena inevitavelmente se mostrará inferior, mas ainda assim, não deixa de ser envolvente e charmoso em sua narrativa, fruto da habilidade intelectual e criticamente cínica da escrita machadiana que ali despontava. São personagens humanos e multifacetados, capazes de carregar em si compaixão e hipocrisia sem nunca perder a autenticidade – mesmo uma idealizada Helena, é uma personagem falha e repleta de contradições e hipocrisia. São todos personagens complexos, que refletem em seus conflitos dogmas e maneiras de se comportar e pensar inerentes à cultura da sociedade da época.

Portanto, é um romance que não basta apenas ler, mas é preciso ter compreensão do seu contexto. Penso que Helena ganhou muito mais peso, substância e significância com o passar do tempo, por fazer uma leitura irônica e sarcástica de uma época – sendo assim, se tornando maior através das lentes que encaram o passado; ou seja, penso que para a época, a despeito da incrível capacidade escrita de Machado, a obra não pôde ser vista por muitos além da simplicidade de sua trama folhetinesca, deixando esvair pelos dedos o maior charme desta, que é seu caráter crítico. Bom, não é surpreendente que tenha se tornado ícone da literatura brasileira. 

De grande reflexão sobre o caráter humano e social, e ainda que crítico e cínico, Helena é fruto de um tempo e de um determinado estilo literário, então sua catarse máxima se dá quando abraça e fala essa mesma língua. Altamente idealizada, Helena era pianista, sabia desenho, falava francês, entendia de costuras e bordados, lia admiravelmente e conversava com graciosidade. Ela detinha a jovialidade da menina e a compostura de uma mulher madura, um conjunto de virtudes domésticas e maneiras elegantes que se espera de alguém de classe. Seu traçado é de um perfil ideal da figura feminina para o gosto da época, mas naturalmente uma visão insustentável para os dias atuais.
Descrita como moça meiga e bonita; mas inteligente, submissa; mas influente em suas posições, de grandes virtudes e capaz de fazer de tudo; sem soar leviana e autoritária. Além de talhada fisicamente com as curvas e beleza ímpar – importante frisar – que tornam o sexo feminino uma divindade desejada, mas jamais tocada, por qual sua pureza deva-se manter imaculada. Ou pelo menos, essa era a fantasia idealizada, razão pela qual romanticamente a mulher alcançava status de divindade na mocidade casta, mas perdia o encanto feminil e era alçada a status de simples mortal depois de possuída. É uma das razões da tragédia ser tão romanceada pelas mocinhas sonhadoras e casais que viviam amores impossíveis na sociedade de outrora. 

A morte neste aspecto representava a eternidade. Eternamente bela. Eternamente amantes. A morte é a transcendência à mortalidade e a garantia do eterno, que a vida jamais pôde sustentar. Nesse sentido, as traiçoeiras teias do destino que prendem Helena em um amor impossível por seu irmão continuam exercendo controle sobre ela mesmo quando há a primeira reviravolta fatal. Este contínua sendo impossível. A [spoiler, selecione para ler >>>] tragédia da morte é a única saída para a salvação e libertação da alma de Helena; é a sua redenção, e também a forma de ela nunca deixar de ser a idealização da perfeição, se mantendo donzela e a pureza da sua alma. De outro modo, não poderia ser possível, mesmo porque, o bem capital era vista como sacro e a repartição dos bens entre pessoas estranhas de fora do núcleo familiar era contrassenso e imperdoável pela literatura do século XIX.

***

Bem, eu gosto bastante de Helena. Então é claro que este lançamento da NewPOP de um quadrinho brasileiro no estilo mangá (ou seja, estilo de quadrinhos típico do Japão) não me passaria despercebido. Mesmo porque, já havia lido Zuncker (2010, também quadrinho brasileiro em estilo mangá lançado pela NewPOP, que emulava a arte e características do shoujo mangá), também das mesmas autoras desta adaptação. O Studio Seasons é um grupo formado por três autoras (Montserrat, Simone Beatriz e Sylvia Feer) com um estilo de arte, narrativa e estruturação tipicamente de shoujo mangá, em especial os de romance. E elas são bastante competentes no que fazem. Não me lembro muito de Zuncker, mas havia algo que me fez querer ver mais trabalhos do grupo. E, finalmente, Helena aconteceu, e devo frisar que há uma evolução significativa na arte geral, que já era muito boa, e na narrativa visual. 
Se cada obra pertence ao seu tempo, Helena do Studio Season é a cara do século XXI. Não me entendam mal, não há uma modernização na história se passando no nosso período contemporâneo. É uma adaptação fiel, tanto quanto possível numa edição de 1 volume de 256 páginas. Mas é um produto ótimo para adolescentes e jovens, assim como entusiastas de mangá – em especial para aqueles que provavelmente nunca lerão Helena por vontade própria. 

Não substitui em hipótese alguma a leitura do livro original, é uma outra linguagem, evidentemente – logo, não é leitura definitiva para aqueles que vão estudar o contexto e a linguagem histórica tampouco o Romantismo literário brasileiro. Mas para pré-adolescentes que ainda não possuem a maturidade para encarar uma obra machadiana e aventureiros, esta Helena em mangá é certamente uma ótima opção em termos de narrativa visual. Para pessoas como eu, que já leram e possuem certa bagagem de entendimento, é um entretenimento razoavelmente bom. 
Digo, é bom poder pegar uma leitura imaginativa e vê-la ganhar forma através da imaginação de outra pessoa. A ambientação é tão linda e o traçado é excelente. Não poderia esperar outro Eustacio tão belo e simpático, tal qual um príncipe. Nem uma Helena diferente desta, tão meiga e envolvente em suas feições. São personagens, protagonizando um amor impossível, que refletem a caracterização original mas que ganham forma segundo a imaginação de um fã de mangá shoujo, se conectando indistintamente com o publico atual. De outra forma não ficaria tão bom, ao menos visualmente, pois Helena é um romance absolutamente romancesco e jovem, e com este conteúdo, o mangá que hoje vai muito além uma mídia própria de um país ao se tornar também um estilo narrativo, é a melhor referência atual quando o assunto é romance em quadrinhos para o público jovem contemporâneo. 

O Studio Seasons atinge um nível satisfatório de adaptação de texto, ao mesclar citações originais a uma prosa fluída para a linguagem visual, sendo felizes inclusive na inclusão de elementos originais, que além de construir uma melhor narrativa para o meio, também dá personalidade à sua obra. Uma obra visual, ainda mais impressa, precisa de cuidados diferentes de uma escrita. Outra razão para o estilo mangá ter sido uma boa escolha para tal obra é que há características na linguagem que é única ao seu meio, como o recurso narrativo dos devaneios oníricos, onde há a quebra da perspectiva da realidade e a página se torna amplamente metafisica. Embora mesmo os quadrinhos americanos já tenham absolvido essa linguagem, a dramatização cênica de Helena exige uma constante alienação da matéria, em que diversos efeitos são empregos para aludir à atmosfera e introspecção dos personagens. Nada melhor representar a leveza e romantismo do espirito da personagem Helena que não os floreios típicos da narrativa clássica do shoujo mangá, onde o cenário se torna uma bolha florida desprendida da realidade.

Ademais, há o próprio apelo romântico em voga. Nas últimas páginas do mangá, Eustacio dá um beijo – o que no livro é um gesto simbólico repleto de significados – na testa de Helena, e flutuando acima desta imagem, há o desenho dele a beijando na boca. Que é nada mais que a reiteração onírica de seus desejos, aqui nos quadrinhos, ganhando forma palpável através da fantasia. Devo dizer que foi uma sacada brilhante, que além de estar em conformidade com a mídia, também se conecta com os anseios de um publico que já não se satisfaz plenamente apenas com a insinuação de uma ideia. 
Enfim, levando em consideração a globalização e como os meios de arte se influenciam, a arte e a narrativa visual no mangá de Helena é um meio termo cultural, afinal, apesar do estilo mangá, as feições são inequivocamente ocidentais, como não poderia deixar de ser, e fico feliz que o grupo não tenha caído na armadilha tola de fazer a leitura de trás para frente. Que se pegue o estilo e características de outra cultura é algo absolutamente natural, mas ambientação, nomes e modo de leitura japonesa, é algo que vejo como completa falta de imaginação. Este é apenas um pequeno devaneio, já que Helena é uma adaptação, mas o Studio Season já demonstrou a mesma maturidade em Zucker.

Se este Helena é bom? É bom. Peca pela omissão de alguns eventos responsáveis pela maior complexidade na caracterização dos personagens, o que invariavelmente acaba por tornar algumas segmentações entre um evento e outro algo superficial. Não é um produto substancialmente completo, mas dentro dos limites impostos às autoras, elas conseguiram entregar um resultado satisfatório. 

Nota: Na introdução, tem uma curta análise da obra, bem competente em ressaltar em síntese o caráter patriarcal e católico da estrutura familiar. Contexto necessário para pessoas perdidas ou novas demais para compreendê-lo.

Nota: 07/10
Ano: 2014
Autor: Studio Seasons
Editora: NewPOP
Formato: 12,8 x 18,9 cm
Páginas: 256
Papel: Off-set 90g – Capa cartonada
Preço de Capa: R$ 19,90
Volume: Único

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