Saudações do Crítico Nippon
Após 12 anos sem uma
produção japonesa, sendo a última Godzilla: Final Wars, o leviatã nuclear ganha
praticamente um remake pelas mãos de Hideaki Anno (Evangelion) e Shinji Higushi
(Shingeki no Kyojin). Já acostumados com seus kaijus particulares, os diretores
criam um filme que desperta nostalgia por acompanharmos a descoberta do monstro
“pela primeira vez”, e encantamento diante da nova visão contemporânea que
deram. Assim, criam um longa dinâmico e envolvente que resulta na melhor versão
de Godzilla até hoje.
Acertadamente, colocando o
personagem-título como o vilão da história ao invés de fazê-lo lutando contra
outros kaijus, o filme não perde tempo em iniciar o ataque do monstro. A partir
daí, acompanhamos a evolução gradual de Godzilla (e nessas sequências podemos
notar facilmente o toque de Shinji Higushi), simultaneamente com os esforços do
governo e militares em detê-lo. E esse é o filme. Na teoria, tinha tudo para
dar errado: não há um grande esforço em esconder o leviatã e gerar suspense em
função disso; não há um arco dramático entre os humanos (um pai de família, ou
um jovem casal, nenhuma fórmula pronta que Hollywood adora) e constantemente
transitamos entre supervisores, comitês, superintendentes, ministros, cientistas,
chefes de gabinete, entre outros. Na prática, porém, o longa é dirigido com
maestria por Anno, com cortes rápidos entre os núcleos e focando na descoberta
gradual daquelas autoridades e deduções de todos os departamentos.
Não há
sequer personagens secundários encarnando vilões unidimensionais para atrasar
ações contra o monstro ou algo do gênero. Não, todos são extremamente
colaborativos e tratam aquela situação com a seriedade de um documentário. Aliás,
as primeiras câmeras do longa são estilo found footage, em primeira pessoa,
como se estivéssemos realmente ali presenciando um ataque do qual não sabemos
nada. É fascinante presenciar discussões sobre capturar a “criatura” viva
devido aos ambientalistas e a opinião pública, quando ainda desconhecem a
proporção do bicho. Aliás, ao intercalar os ataque e as reuniões
simultaneamente, a direção é inteligente em fazer a evolução de Godzilla sempre
um passo a frente. Por exemplo, quando discutem que o monstro aquático pode
estar criando pernas, já o testemunhamos de pé, afinal, a informação sempre
chegará atrasada até eles.
Mantendo a
alegoria do trauma japonês em seu personagem-título, Anno respeita a
importância histórica e cultural da mitologia que tem em mãos. E no processo,
faz duras críticas à submissão japonesa e ao governo dos Estados Unidos e sua
política de se meter em basicamente todos os assuntos do planeta. Em um piscar
de olhos, sem qualquer tipo de autorização, os exércitos estadunidenses
sobrevoam território nipônico e dão prazos para suas decisões. Quando estão
discutindo sobre usar uma ogiva nuclear no meio de Tóquio e ouvimos a frase “Se estivessem em Nova York, disseram que
fariam o mesmo” é impossível não revirar os olhos e balançar a cabeça.
Sabemos que quando se trata do próprio território, a história é completamente
diferente.
Construindo
uma atmosfera angustiante e um universo extremamente plausível, o longa cria
discussões das mais diversas, tanto que os primeiros ataques ao leviatã ocorrem
quase na metade do filme. São discutidos os efeitos colaterais, procedimentos
de evacuação de milhões de cidadãos, conferências para tranquilizar o público,
a dificuldade de velhos e doentes em se locomover, as origens de lixo
radioativo do monstro. Isso tudo transitando com segurança na tela, sem
desacelerar a narrativa, e mostrando a devastação dos ataque com a frequência
que mantém o espectador sempre envolvido. O tom de urgência é forte e
constante, mesmo que estejamos em grandes salas de reuniões com homens de
terno.
Finalmente,
chegamos à criatura título. Feita com uma mistura de captura de movimento, ator
fantasiado, cabos sustentando a cauda e efeitos especiais, Godzilla é de tirar
o fôlego. Apesar dos olhos vidrados em alguns momentos e de não parecer muito
ágil, seu rastro de destruição faz jus às origens de seu nome, que significa
“deus encarnado”. O vilão evolui diante de nossos olhos, descobrindo sua força
aos poucos, o que é um exercício fascinante. E a sequência em que descobre o
seu icônico sopro atômico (e as fendas dorsais!) é uma das mais belas que
veremos esse ano. É como se Tóquio tivesse se transformando em outro inferno de
Hiroshima e Nagasaki.
O compositor
Shiro Sagisu embala esse e outros momentos de maneira absolutamente impecável,
homenageando a original de Akira Ifukube e pincelando com novas camadas. São
acordes e corais poderosos, quase sacros, elevando a escala de tudo que
testemunhamos. As batalhas, aliás, são sublimes, dificultando gradativamente e
quase de forma didática. Primeiro o exército usa metralhadoras, e então
mísseis, passando por bombas largadas de aeronaves, e assim sucessivamente. E
mesmo que na maior parte do tempo Godzilla pareça absolutamente indestrutível,
a inteligência daqueles humanos torna o embate sempre cambiante com estratégias
novas.
Hideaki Anno
investe em planos quase sempre centralizados e simétricos, técnica que me
lembrou muito George Miller em seu recente Fury Road. Isso torna a ação
deliciosamente clara e panorâmica. Bem como constantes planos de inúmeros objetos
repetidos, realçando a escala de pessoas afetadas e envolvidas no planejamento
contra o monstro. Embora nem sempre se saia bem sucedido em suas ideias. Como
quando tenta colocar a câmera na ponta de objetos inusitados (muito utilizado
em Breaking Bad), e cria um plano absolutamente pavoroso em que ela se encontra
dentro de um computador e vemos os códigos flutuando no ar.
Shin
Godzilla (ou Shin Gojira, ou Godzilla Resurgence) é um exercício narrativo
fascinante, com uma fotografia deslumbrante e uma trilha sonora evocativa. Encarando
a humanidade com otimismo surpreendente, o filme celebra entusiasmado o esforço do
coletivo para vencer um desastre natural. E como somos admiráveis quando
esquecemos nossas diferenças em prol do bem maior.
(Para mais
dos meus textos é só ir no menu “Crítico Nippon”)
Twitter:
@PedroSEkman
Nenhum comentário :
Postar um comentário
Os comentários deste blog são moderados, então pode demorar alguns minutos até serem aprovados. Deixe seu comentário, ele é um importante feedback.