Há mangakás que se utilizam de fatos ocorridos em suas
vidas, para compor suas obras. No caso de Hideaki Anno, o melhor momento de Neon Genesis Evangelion, veio com sua
crise pessoal. Em Kaiji, certamente a vida difícil de Fukumoto Nobuyuki, autor
do mangá, influenciou não somente os rumos dessa história, mas como todas as
outras que levam seu nome. Normalmente seus personagens principais são solitários,
apanham bastante da vida, mas continuam resistindo. Há de se destacar que são
sempre centrados em torno do lado psicológico, jogos e probabilidades matemáticas,
que são humanamente possíveis pra qualquer um. Ao menos, na prática. E embora
um dos pontos mais fortes dos mangás, seja essa narrativa cinematográfica,
poucos autores conseguem se aproveitar disso tão bem, usando todos os recursos disponíveis,
como FKM (Fukumoto) o faz.
Claro que, como essa resenha é basicamente sobre o anime e
não o mangá, eu darei os devidos créditos à MADHOUSE e ao diretor Yuzo Sato (One Outs/ Biohunter) que consegue
transpassar de forma magistral todo o feeling de suspense e atmosfera de tensão
da obra original, se aproveitando tão bem das vantagens que só uma anime pode
oferecer. Não vou dizer que é impossível, mas digo que é difícil não se
envolver com o drama de Itou Kaiji e não torcer por ele a todo instante. Eu li
recentemente no blog Radix, sobre Chihayafuru,e o poder de criar torcedores. Digo o mesmo sobre Kaiji, que com o decorrer
do anime, transforma o espectador em torcedor, e o entrega exatamente aquilo
que ele quer. Até mais que Chihayafuru, com a diferença que aqui, não tem nada
de bonitinho, romance e linguagem poética. É pancada e mais pancada! Siiimmm se
prepare, pois Gyakkyo Burai Kaiji (nome
original do anime) irá te nocautear e você vai pedir bis!! Para isso, não poupa nas cenas de tensão psicológica,
boas doses de sadismo, reviravoltas inusitadas e na parte técnica, com um bom áudio
e efeitos competentes. Destaque para o seiyuu Fumihiko Tachiko (Ikari Gendou, de Evangelion), narrador
da história, responsável por situar ainda mais o espectador naquele ambiente
hostil de competitividade e rivalidade. Não foram poucos os episódios onde fui
flagrada adorando o tom viril e inquietante, que parecia estar se divertindo
mais do que ninguém com o drama de Itou Kaiji. É como se ele estivesse diante
de você e a cada investida do time adversário, ele berrasse verborragicamente
ao ponto de soltar saliva, tamanha intensidade.
Itou Kaiji é um vagabundo, que mal consegue se sustentar com
o que ganha. Tem como hobbie diário, roubar emblemas de carros e esvaziar seus
pneus. Mas Kaiji é incrivelmente humano, ele não é indiferente ao ambiente de
pobreza e miséria em que vive, nem muito menos no que ele se tornou. Mas também
não faz nada para mudar essa realidade. Falam bastante das heroínas do universo
shoujo, sempre tão choronas, e nesse caso, Kaiji é o contraponto. Poucas vezes vi um personagem tão chorão, mas
ele é diferente de um Ganta Igarashi (de
Deadman Wonderland). Ele é um personagem bem construído e definido. Além
das lágrimas serem justificáveis, ele parte pra cima, como um cão raivoso.
Tenho a impressão que são as lágrimas derramadas por FKM em seu duro caminho de
trabalho braçal e aperfeiçoamento do traço para seguir o sonho de ser mangaká.
O traçado não é bonito. Não é delicado. Não é convidativo.
Mas se ajusta perfeitamente àquele universo, que também não tem nada de bonito,
de delicado e convidativo. Aliás, eu disse que não tem nada de bonito, mas com
base no que a beleza é: Algo extremamente relativo. Os personagens são feios (e o mais bonitinho e alvo das fangirls/fujoshis
de kaiji, só aparece na segunda temporada) e bizarros, mas é impressionante
o senso de lealdade e justiça de Itou Kaiji, para com seus companheiros ao
quais, ele se alia. Tanto, que chega a irritar um pouco, por ser tão “bonzinho”,
confiar demais e acabar se fodendo, depois. Tanto, que em alguns momentos, só
consigo defini-lo como “otário”. E por eu estar dizendo isso, tenho certeza que
a visão que muitos terão de mim, é a de ser uma garota sem escrúpulos, capaz de
vender a alma por dinheiro. E não tiro a razão, afinal, Kaiji faz o
politicamente correto. Ele pode ser um anti-herói, mas é o símbolo máximo do
homem. Com isso, eu digo que Kaiji, é
uma história que não é machista (ou ao
menos, eu não enxerguei isso em momento algum) e misógina (de forma alguma, ao menos, não
racionalmente), mas é centrada no universo masculino e sob um ponto de
vista masculino para um público masculino. É um homem contra o mundo. Querendo
ou não, os heróis das tramas, são a representação de FKM e sua visão do mundo.
E Kaiji representa o ideal masculino. Não do que a mulher vê na figura do
homem, mas da própria forma que o homem se vê. Não é o príncipe destemido que
vai invadir o castelo, matar o dragão e salvar a princesa. Ele é aquele que vai
lutar contra o mundo e todas suas adversidades. E vencer, mas, sem se vender,
com seu próprio esforço e sem trair seus iguais e ideais.
E no fundo, Kaiji é mais uma cartilha motivacional (não no mal sentido, de autoajuda) japonesa.
Seja na Shounen Jump, ou na Big Comic Original, quando o público não é o
famigerado nicho otaku, a mensagem é quase sempre de superação e competitividade.
Até mesmo num mangá repleto de nuances e palavras bonitas, como Solanin, isso se mostra aparente, como
não poderia ser diferente, claro. Ser competitivo é o que moldou o Japão como
ele é hoje. Se você quiser vencer, você precisa competir. O universo de Kaiji é
um retrato, apesar de justificadamente caricaturado, do mundo como ele é. Na
verdade, todos os desafios de Kaiji, a Yakusa, tudo é uma metáfora para o que
você encontra aqui fora. Os personagens são incrivelmente humanos, até mesmo o
idealista imperfeito Kaiji. Na segunda temporada, inclusive, há um personagem
chave, introduzido na história como filho de um dos antigos companheiros de
Kaiji, que ficaram pelo caminho. Ele é praticamente a figura do espectador, ou
ao menos, eu me vi representada ali, na figura daquele personagem que questiona
o idealismo de Kaiji. Que o vê como um “looser”,
que por sua sensibilidade, será sempre uma presa fácil para os “predadores”.
Mas observando o Kaiji à distância, ele percebe o motivo de Kaiji ser sempre o “sol”,
a figura central do grupo, o motivo dele ser tão querido. E verdade seja dita,
mesmo que você continue achando o Kaiji um idiota, você simplesmente não
consegue odiá-lo e irá torcer por ele. A todo o momento. Ao ponto de roer as
unhas, morder os lábios e puxar os cabelos. Por mais que ele se ferre sempre.
[Minhas reações desesperadas enquanto assistia as duas temporadas]
- Esse “Chi chi chi” tá me dando nervoso…nunca é coisa boa…
- OMG!Nunca pensei q ficaria taum nervosa com um perdra-papel-tesoura!
- Idiota!Tá na cara que tem treta aí!
- Naum falei!Naum falei!Naum falei!Naum falei!Naum falei!
- Caraca!Que ideia otima!Kaiji é um gênio!
- NÂÂÂÂÂOOOOOOOOOOOOOOOO!Bando de FDPS!
- Xiiiiii…mais jogos…olha esse “chi chi chi” de novo…
- Que louco!Jura q naum tinha um colchão?!
- O QUUUUUUUUUUUEEEEE?MALUCO!
- Efeito dominó…cade o povo da ponte?
- Supervisor FDP!
- Que jogo simples…mas apostar a propria audição?!
- Esse cara lê mentes..lê movimentos…lê tudo!
- Supervisor FDP! [2]
- Presidente FDP!
- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA CHORA BEBÊ!!!
- Naum Kaiji…naum inventa moda…
- DROGA!
- NÂÂÂÂÂÂOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!MENTIRA!
- Presidente FDP![2]
- ELE CAIUUUUUUUUUU, ELE CAAAIUUUUU!!!!! CARACA!!! HAHAHAHAHA!!!
O motivo disso é o fato dele ser um protagonista
extremamente carismático. Seu traço não é perfeito, seu nariz é pontudo, suas
roupas são sujas, como a da maioria dos personagens. Possui várias partes do
corpo mutiladas, resultado dos jogos sádicos ao qual se submete. É impulsivo,
pobre, viciado. Com tantos defeitos assim, é impossível não se colocar no lugar
dele uma vez ou outra (ou a todo
instante). A forma de pensar do FKM é a mais correta possível. Ele consegue
retratar de forma crível, uma história com cenários inverossímeis. Os membros
daquela sociedade, seus vícios com jogos, a forma como se veem numa espiral
crescente de azar em se aventurar e gostar (!!!)
daquilo, ao ponto de arriscar tudo que tem e se sentir vazio quando não pode
mais jogar. Kaiji é além de tudo, um drama sensacional e vou repetir novamente,
apesar do cenário inverossímil, a roupagem arquétipo das personagens, você
consegue enxergar ali uma dualidade humana incrível, que tem seus picos altos
principalmente nos momentos de mais tensão psicológica. Seja em Kaiji
arriscando até seus membros do corpo para continuar jogando, chorando e abrindo
mão de quaisquer resquício de orgulho que lhe restou para implorar aos outros
por mais grana pra continuar jogando, por mais que perca. Ou naquele delicado
momento da vida em que mais nada importa e você só pode contar com a pessoa que
está ao lado. Nesses momentos, não importa se a pessoa é conhecida ou não, se
tem desavenças ou são inimigas, vocês se apegam, procuram se ajudar mutualmente
e sofre quando o outro cai.
No caso de Kaiji, essa “queda” é fatal e sem volta. O melhor
é vê-los quando estão de frente pra morte, sua coragem vai embora e nenhum
senso de racionalidade consegue se sobressair. Você é até capaz de empurrar o
outro, apenas para continuar de pé. E bem, a essa altura talvez pouco importe,
mas vou contar a forma como Kaiji entra nesse mundo. O Kaiji se tornou fiador
de um “amigo”, Furuhata Takeshi, ao qual não pagou a dívida e fugiu, deixando todos
os encargos para o companheiro. Ou seja, Kaiji se FODEU, e a dívida que era de
300.000 ienes, já havia se tornado 3,85 milhões e continuava a crescer, afinal,
estamos falando de agiotagem. Kaiji, claro, não tem a menor condição de pagar
isso e mesmo que trabalhe por toda uma vida, com sua condição de assalariado,
nunca conseguiria quitar os débitos. O cobrador, suspeitíssimo, lhe oferece uma
saída: participar de um cruzeiro onde há jogos e jogadores na mesma situação.
Obtendo sucesso, sua dívida é extinta e uma quantia é dada como prêmio. Mas se
falhar, seu futuro será o trabalho escravo por anos.
Kaiji: O Mestre do Impossível
Bem, pra terminar eu não posso deixar de comentar o quanto
Kaiji consegue manipular os sentimentos dos espectadores. A série consegue
brincar com o seu lado mais sádico, te fazer ter ataques nervosos e no fim, te
esgotar psicologicamente. Mas claro, no fim das contas, o que restará em seu
rosto, é um sorriso de pura sadicidade, ou pelo menos comigo, foi assim. Então,
por mais que Kaiji seja perturbador em certo sentido, esgotante por sua alta
densidade psicológica e do drama, o humor negro também se destaca. E olha,
Kaiji é uma experiência bem mais satisfatória se você tem facilidade em se
divertir vendo os outros sofrendo (claro
que estou falando em obras de ficção). Porque sim, o único humor da série é
isso. E se prepare pra dedos decepados, tímpanos rompidos, personagens sendo eletrocutados,
tendo que atravessar vergões de ferro em alturas enormes, caindo e se despedaçando
lá embaixo, com a plateia assistindo a tudo e se divertindo com isso. E você
também se divertindo, pois se não tiver se divertindo, certamente estará
sofrendo muito. Mas independente se você rir ou chora com tais situações, Kaiji
irá te deixar com os nervos a flor da pele e você irá gostar muito. O mais fantástico
disso tudo é o fato de Kaiji ser tão truculento, mas não explorar a violência
visual. Apesar do publico alvo ser o masculino, não há como discordar disso,
não acho que seja uma série exclusivamente pra homens (é diferente de algo descerebrado, que é pura testosterona e punhetagem
semiótica). Esse pensamento é erroneamente confundindo com o fato de muitos
acharem que toda mulher é uma flor delicada capaz de se despedaçar com o vento.
Kaiji é uma série madura, um entretenimento honesto e competente, mas nada
atrativo para o público feminino, verdade. Além de ser duro demais, quase um
tapa na cara. Mas para se curtir, basta gostar de boas histórias, descer da
roda gigante e estar preparada pra curtir um espetáculo visceral e bruto, de um
fragmento da vida. Dizem que o FKM, á avesso a finais felizes, mas como ele dizna entrevista, é uma história sobre maturidade. Você pode perceber que o mundo
é cruel, mas isso não significa que seja motivos para deixar de acreditar e
lutar. E é por isso que o publico de alvo de Kaiji, não são os consumidores
hardcores japoneses.
Outro ponto de destaque é a inteligência de Kaiji. Não importa
as situações em que se meta, ele sempre encontrará uma luz no fim do túnel.
Kaiji não é apenas jogos sádicos, mas
muitos jogos de azar também. Como já virou chavão popular entre os
espectadores, “nunca um jogo de cartas foi tão emocionante”. Você nunca sabe
de onde Kaiji irá tirar o ÀZ de Espadas, e mesmo que tire, nunca é garantia de
vitória. Essa é uma história repleta de reviravoltas e trapaças (algumas, inclusive, muito revoltantes).
Quando você acha que Itou Kaiji, chegou num ponto onde não pode mais perder,
por ele ser o protagonista e a história precisar continuar, ele perde! E você
se desespera. Afinal, e agora? E qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, em
Kaiji, serve para se jogar e apostar. Máquinas de Pachinko, se transformam em
monstros com vida e com gritos assustadores, com a uma boca tão grande que
parece que o protagonista da história a qualquer momento será tragado por ela.
Eu nunca pulei tanto assistindo um anime (nem
no final de Mawaru Penguindrum), como foi com Kaiji. O interessante, é que
cheguei a achar no primeiro episódio, que eu tinha entrado numa fria. Mais de
10 episódios com foco em jogos de cartas? Esse traço horroroso? Esse bando de
homens fedorentos e mais feios que o capeta? Ao fim do primeiro episódio, já
estava completamente envolvida naquela atmosfera e mal vi os episódios passar.
[ZAWA! ZAWA! ZAWAAA!!!]
Mas paradoxalmente, o melhor de Kaiji é o visual. Kaiji não
seria uma história tão boa e envolvente, se não fosse à expressividade de seus
personagens e o ambiente em volta. Como mencionado no ótimo artigo do blog
Ogiue Maniax, The Effects of VisualFalsehood, o que acontece quando as mentiras não são palavras, mas as
imagens? E é exatamente isso que temos em Kaiji, a exploração de algo comum nas
obras de FKM, arte que ele domina plenamente. Distorções de formas é a
linguagem mais eficaz de expressividade em um desenho, que serve para mostrar
uma extrema ou exagerada emoção. E a arte de FKM vai além desse conceito, e nos
coloca na mente dos personagens. Seja o cenário em volta se retorcendo
completamente, expressando medo e insegurança, seja os próprios personagens
indo além de sua forma física e ficando completamente retorcidos, até os seus
semblantes; O caçador crescendo pra cima
da presa e a vítima diminuindo diante do algoz. Enquanto um esbanja sua enorme
boca, a fim de devorar, o outro se encolhe ao máximo. É o ponto alto da
expressividade e ainda que a MADHOUSE tenha limpado o máximo que pôde do traço
do mangá, tornando o mais palatável para uma mídia em vídeo, todas as particularidades
que fazem do FKM, um mestre, estão ali. “Folheando” aletoriamente o mangá, pude
perceber que suas noções de efeitos visuais são incríveis. Em certa parte, há
três personagens, diante do desafiante. Logo acima de suas cabeças, na parede,
diversos objetos de torturas, que davam a exata ideia do que aconteceria se
perdessem. Isso não foi mostrado, nem tão pouco mencionado, mas nem precisou.
Tipo: TV
Estúdio: MADHOUSE
Temporadas: 2 (26 episódios cada uma)
Diretor: Yuzo Sato
Ano: 2006/2011
Gênero: Drama/Esportes/ Psicológico