terça-feira, 23 de julho de 2013

Scary Story: Human Clock (1962) - Ascensão & Queda dos Mangás de Alugueis


E ai, já teve sua dose de tarja preta hoje?

A primeira vez que eu li este mangá, eu o achei meio confuso (apesar de imaginar por alto a motivação do autor), como se o autor o estivesse levando no puro delírio. Foi pesquisando sobre o ele e descobrindo sua história, que meus olhos se abriram exponencialmente. Na segunda leitura, me deparei com uma história tão simples, que fiquei a pensar em como o contexto histórico de uma obra mais clássica pode ser fundamental em como a absorvemos nos dias de hoje. Dom Casmurro, por exemplo, é um romance clássico que ficou por mais de meio século com apenas uma interpretação da dúvida mais debatida da literatura brasileira (que Capitu, de fato, cometera o adultério). Só depois de décadas surgiram às primeiras controvérsias, o que está intrinsecamente ligado à questão cultural da época, onde o pensamento mais obvio era que de fato Capitu havia traído Bentinho. No mundo das animações, Neon Gensis Evangelion, a série clássica de 1996, é um outro fenômeno interessante para o publico de hoje. Depois de tantas cópias, assistir essa série sem o prévio conhecimento de sua história tirará parte de sua lógica interna, embora eu acredite que funcione perfeitamente por si só.

Human Clock (originalmente Ningen Tokei, ou em português ‘Relógio Humano’) ainda é bem delirante mesmo com a compreensão do contexto, mas é um delirio muito mais lúcido por se saber previamente a figura por trás daquelas sombras assombrosas. Essa descrição é estranha e enigmática? Hmm, eu tentei o meu melhor!!!

Tadashi Koe é um jovem estudante que durante uma distração ao observar uma garotinha na rua, é atropelado por uma bicicleta, sendo cercado por uma multidão de curiosos. Ele é aficionado por relógios e está sempre tendo alucinações constantes com o universo lúdico se misturando com o mundano, fazendo com que seja difícil fazer uma distinção clara do que são sonhos delirantes do que é de fato real. Depois, sua mãe descobre que ele não está indo à aula, que justifica dizendo que sofre bullying e não deseja mais voltar àquele local. Sua mãe então contrata um professor particular para dar aulas em casa, mas logo Tadashi se desentende com ele por ter feito pouco dos motivos que o levaram a deixar a escola. A paixão de Tadashi por relógios fica obvio pelo fato de seus pais terem uma relojoaria, mas quando um dos relógios desaparece, surge um estranho senhor disposto a ensiná-lo, ele só não sabe ainda que este senhor na verdade é o relógio desaparecido que ganhou forma humana. A partir deste ponto, as coisas vão se tornando cada vez mais trágicas.

Isso ai se trata de um resumo bem fragmentado, porque em seus curtos cinco capítulos, Human Clock passeia por diversos cenários e vai de um ponto a outro sem se ater às estruturas tradicionais de uma narrativa. Uma trama é introduzida, então acontece algo, ela é abandonada sem explicações (isto se deve aos delírios do personagem) e o autor parte para um novo rumo, até chegar ao clímax da história, que acontece de forma abrupta, mas surpreendente. No entanto, é impressionante como segue uma linha de raciocínio amarradinho se você considerar o ponto de vista metafísico.

A partir daqui, contém spoilers.





Filho mais velho entre oito irmãos, Tokunan Seiichiro sofreu ainda na infância com a disfunção da hipófise, o nanismo, paralisando na altura de 140 centímetros. Quando criança, ele sofreu bastante bullying devido a esta deficiência, fazendo com que se tornasse bastante sensível quanto a pessoas que o rodeavam. Isto pode ser notado em como ele se incorpora em Tadashi, logo no primeiro capítulo quando é atropelado e uma multidão se reúne em torno dele, que delira se tratar de uma multidão de demônios, com tudo em volta psicologicamente retorcido. Sua mãe brada com ele em quão insensível são os seres humanos, assim como assenti tranquilamente que ele pare de ir à escola.

Seiichiro nasceu em 1934, na década de 1950, Shotaro Ishimori e Osamu Tezuka se tornavam figuras comentadas com a divulgação de trabalhos em quadrinhos, assim Seiichiro como se atraído por seu grande ídolo [Tezuka], se matricula numa escola de arte, logo após publica sua primeira história [Kage wo Kiru Samurai], que mantém uma influência artística que remetia à Tezuka e Studios Disney. Foi também na década de 50, mais precisamente em sua segunda metade, que explodiu o kashihon manga (lojas de mangás de aluguel), que é algo parecido com as locadoras ou bibliotecas [só que sem empréstimo gratuito]. As chamadas kashihon'ya (livrarias de aluguel) eram lojas que datavam desde a época do período Edo, mas que só foi explodir mesmo na metade dos anos 50 com a incorporação dos mangás. Após a Segunda Guerra Mundial, as crianças pediam por entretenimento, o mangá surgiu como uma forma de escapismo para distrair a mente das dolorosas lembranças, mas nem todos tinham recursos suficientes, então surgiu a idéia de fazer com os mangás o que já se fazia com livros, emprestando-os mediante uma pequena taxa.

Esse sucesso das kashihon'ya fez com que surgissem pequenas editoras visando especialmente este mercado. Com essa tendência, surgiram diversos artistas independentes que gozavam de extrema liberdade, assim como também grandes editoras interessadas que começaram produzir revistas com diversas histórias de mangás. Foi com o surgimento das Kashihon’ya que Seiichiro conseguiu publicar seu primeiro mangá, e as histórias que veio a publicar logo depois. Porém, já na década de 1960 os mangás de alugueis entraram em declínio com o crescimento da economia e a afloração das grandes editoras que investiam pesado em antologias populares que arrecadavam muito dinheiro, é quando começa o inferno astral de Seiichiro, que não tinha como, com o seu estilo, migrar para um público popular.

O ComicPress usa um termo em sua matéria sobre o autor, que eu gostei bastante; “publicar ou morrer”, afinal ele não tinha outra escolha a não ser investir pesado nos mangás de alugueis. Aparentemente, é quando sua arte começa a ficar mais rebuscada e suas histórias mais ininteligíveis. É nessa safra que surgiu o que foi considerado um de seus dois melhores trabalhos; Human Clock (o outro seria Neko no Mofuku). E chegamos no ponto em que realmente interessa. Human Clock é delirante e doentio em sua outsider art (ou arte marginal), tem uma tensão que te puxa para dentro e causa um desconforto insolúvel, algo que talvez seja complicado de achar até mesmo nas histórias do Junji Ito, porque ali tem pontos muito bem definidos. Agora, este desconforto pode ser algo bom ou ruim, depende da visão de cada um. Na época de sua publicação, nem mesmo os intelectuais conseguiram digerir o seu conteúdo, embora atualmente estejam redescobrindo muito desses materiais raros e desconhecidos, e dando-lhes a chance de virem à luz.

Essa passagem também é autobiográfica, retratando o período que a mãe de Seiichiro esteve doente




Os mangás de alugueis com seus artistas independentes se tornaram um marco importante para que o gênero gekiga (desenhos dramáticos – falei um pouco sobre, aqui) surgisse em oposição ao estilo de histórias popularizadas por Tezuka. Sendo percussor dos gekigas e dos seinens, obviamente o conteúdo geral dessas histórias em exposição nas Kashihon’ya era algo denso e obscuro (além de arraigadamente cultural, as vezes de difícil compreensão mesmo para nós. Experimentei algumas e minha mente entrou em parafuso), por serem produtos de homens que presenciaram o horror da guerra e o que veio depois, retratando ali suas experiências trágicas. Então é entendível essas histórias terem uma carga dramática acentuada, além de uma narrativa lúdica. No caso de Seiichiro, o que mais provocou isso fora o seu drama pessoal. Seus irmãos e irmãs morreram um após o outro, sua inabilidade social, pressão financeira fazendo com que tivesse produzir histórias que não tinha vontade, depressão, tentativas de suicídio que falharam – Sendo assim, você pode absorver Human Clock como se fosse um reflexo de seus conflitos que suportara durante uma vida e que chegava ao clímax naquele momento. A figura dos relógios expressa como uma metáfora para a pressão e estresse produtivo daquele período, sendo tragado ao ponto de se fundir em uma máquina (o relógio que ganha forma humana, se transforma em seu tutor e o traga para um mundo de alucinações), até chegar a um ponto insuportável, sucumbindo. O que havia em seu interior eram engrenagens de relógios.

É meio louco, e assustador (num sentido mais trágico). Sua arte é distorcida, e fica ainda mais deformada quando ele ilustra o mundo interno dos personagens, o que revela uma mente bastante distorcida por trás. Isto é surrealismo em seu ápice ainda que seja uma arte bastante rustica e sem verniz, e eu realmente gostei do resultado final, mesmo na primeira leitura em que eu ainda não conseguia decifrar toda a mensagem da história de um sujeito que sofre tanta pressão no trabalho e tem prazos tão apertados que em determinado momento, ele simplesmente explode, e o que há em seu interior? Engrenagens! Genial. A obra ainda é uma obvia referência, intencional ou não [não importa], à obra máxima do escritor Franz Kafka; 'A Metamorfose'. 

***

P.s.: No entanto, este não foi o fim para Seiichiro. Após publicar seu último trabalho em 63, ele fundou uma empresa e viveu até 2009. 

Ps².: Interessante que outsider art pode ser entendido também como arte dos loucos, no sentido literal da palavra. Não soa meio irônico, se vermos como de fato é o conteúdo de uma outsider art?

Nota: 07/10
Ano: 1962
Autor: Tokunan Seiichiro
Volumes: 01
Editora: Ohta Shuppan

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