sábado, 4 de outubro de 2014

Revisitando Kiseijuu: Parasyte (1988)

A história de coexistência entre distintos seres vivos [plantas, animais, pessoas] e a dificuldade de compreensão mutua, ganhadora do Prêmio Seiun e Kodansha Manga Award.


A primeira vez que ouvi falar de Parasyte (literalmente Kiseijuu, que é também o título original), acho que foi em 2012, a minha reação foi de “WOW!!!! Alienígenas que usam o corpo humano como hospedeiro, parece legal”. Essa premissa foi e é bastante utilizada no gênero de horror, teve sua rápida popularização principalmente devido a “filmes b” antigos e literatura pulp (historias rápidas feitas em papel barato, semelhante ao “papel jornal”), tendo seu auge nos anos de 1970. A fórmula de Parasyte remonta a esta época, inclusive na arte do autor Hitoshi Iwaaki, com design de monstros asquerosamente orgânicos. É inevitável pensar em The Thing (O Enigma de Outro Mundo), The Fly (A Mosca), entre tantos outros. São obras em que os monstros são pegajosos, grotescos e com designs engenhosos que apavoraram uma geração antes mesmo da nossa fantástica [e muitas vezes fria] era digital.

Minha segunda reação foi mais épica, porque tenho o costume de jogar o título que me desperta interesse no Google imagens para ter uma ideia visual da obra, e com o quê me deparo:

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Certa noite, esporos estranhos começam a cair sob a terra. Esses esporos se desenvolvem em formas de larvas e ao avistar um hospedeiro vivo, rapidamente se infiltram em seu corpo e tomam o controle das funções motoras do hospedeiro. O alvo destes vermes parasitas é a cabeça do hospedeiro, matando a vítima e assumindo o corpo. Parasitas possuem um apetite voraz por carne das espécies humanas, o que os tornam nosso predador natural – lembra-se das aulas de biologia em que os professores sempre diziam que a espécie humana ainda não tinha um predador natural? Parasyte é a história do “e se existisse um...?”.

Shinichi Izumi é um estudante de 17 anos que se tornará vitima de um destes organismos parasitários, mas para a sua sorte, ele estava usando fones de ouvido, obrigando o parasita a perfurar e invadir sua mão direita. Shinichi pensa que é uma cobra e amarra um elástico [ou algo do tipo] no braço, prendendo a circulação do sangue e impedindo que o parasita chegasse à sua cabeça. Impedido de atingir o cérebro de Shinichi, o parasita toma o controle de sua mão direita, e então eles desenvolverão uma curiosa coexistência pacífica.

Parasyte apesar de ter sido publicado numa revista para jovens adultos (seinen) é estruturado como um battle shounen, mesma fórmula de outros mangás seinens, como Gantz e Akame ga Kill, em que a faixa etária da demografia permite a utilização de recursos visuais e narrativos mais extremos [como a violência e o sexo], além de uma liberdade maior no modo como o autor desenvolve esta estrutura. Em Parasyte, por exemplo, há o mote clássico do protagonista fraco e confuso/indeciso (adolescência) em relação ao seu futuro, mas que em algum ponto ao se deparar com uma muralha intransponível (os conflitos que surgem neste período de transição, assim como as perdas inevitáveis) e sofrer com estas adversidades – se sentindo fraco e impotente – irá desejar se tornar forte para bater de frente com os desafios que se colocarão diante dele, alcançando o último degrau apenas no fim da jornada (fase adulta). Sim, há, mas o autor tem a liberdade de imprimir um ritmo diferente do que uma serialização para um publica infanto-juvenil exigiria. As lutas estão lá, mas são tão esporádicas e muitas vezes apenas como um aspecto de caracterização, que grande charme da obra está realmente no desenvolvimento do personagem e na forma bem humorada que o autor conduz os eventos. 
Eu não comentei ainda, mas estes parasitas depois de infectarem suas vítimas e assumirem seu corpo, eles podem assumir qualquer forma que quiserem e criar diversos tipos de armas cortantes com seu corpo (bem ao estilo de NaruTaru). São criaturas metamórficas, o que faz com que seja aparentemente difícil de captura-los ou ao menos saber quem são, tornando-os uma ameaça abominável. Aparentemente.

A arte conceitual de Iwaaki para os parasitas é organicamente fabulosa, e embora não seja extremamente detalhada, fascina pelo teor viscoso e a incrível distinção entre um e outro, há vários projetos bem atraentes. Cada qual possuem características bem particulares. Isto acaba pesando um pouco para os embates físicos, mas o que chama atenção realmente são as boas estratégias de lutas criadas pelo autor. São simples, mas funcionais o suficiente para convencer de que um mais fraco é capaz de vencer o mais forte pelo raciocínio.

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No decorrer de Parasyte, Iwaaki tece várias reflexões sobre coexistência e emoção humana. Shinichi dá para sua mão direita o nome de Migi (“mão direita” em japonês), mas este não consegue entender o significado do seu gesto. Ele não tem emoções humanas e seu raciocínio é extremamente lógico e racional. Esta inesperada ligação simbiótica faz com que um não possa viver sem o outro, proporcionando uma mutua cooperação, mas também muitos conflitos. Migi não se importa com nada nem ninguém além de sua própria sobrevivência, enquanto Shinichi deseja salvar as pessoas da ameaça que os parasitas representam.

Os parasitas até lembram bastante o Kyuubey de Madoka Magica, mas o próprio tropo dos alienígenas é associado com esta dificuldade de entender os valores e emoções humanas, sendo utilizado como um recurso dramática em muitas narrativas, como no já citado Madoka Magica. A razão é que o alienígena representa o medo primário do ser humano, o medo das ameaças desconhecidas, implacáveis e indecifráveis, muito além do nosso controle. Nos são incompreensíveis e portanto,  emocionalmente vazios aos nossos olhos.
Diante das perdas inevitáveis de pessoas queridas que foram feridas ou mortas pelo simples fato de terem uma ligação com ele, o fato de ser obrigado a matar pessoas e principalmente pela relação simbiótica com Migi que vai se fortalecendo cada vez mais, Shinichi vai mudando gradualmente, se tornando cada vez mais frio e insensível, contrastando com o Shinichi que os personagens conheciam antes dele se ligar a Migi – o Shinichi de antes era fraco, mas sensível e expressivo, o de agora é forte, mas de alguma forma parece ter perdido parte de sua humanidade. Ao ler Parasyte, frequentemente você verá algum personagem ligado a Shinichi o indagando se ele é mesmo o Shinichi, se ele é mesmo um ser humano, e quem é ele. É um recurso do autor para evidenciar a mutação do personagem que vai gradativamente se transformando, mas também reflexo em relação a natureza humana e os questionamentos da narrativa.

Não só alienígenas, mas constantemente máquinas (androides, consciência artificial, robôs, etc) e monstros/vampiros também são utilizados para expressar a dicotomia entre ser humano (que significa ter emoções) e ser qualquer outra coisa [um objeto, uma ferramenta, um monstro, etc.]. Assume-se que ter sentimentos e a capacidade de ler emoções nos outros é uma característica humana. E sentimo-nos superiores, porque nós nos emocionamos, sentimos. É um pensamento equivocado, longe de ser inexplicável, as emoções podem ser nada mais do que um resposta autonômica a mudanças em nosso ambiente e a necessidade de se adequar a ele para sobreviver e passar os genes adiante, evitando a extinção da raça. É como um software programado no nosso hardware biológico pela evolução como uma resposta para a sobrevivência.

Estudos de neurociência descrevem a emoção como “circuitos de sobrevivência” que existem em todos os seres vivos. Um organismo, tão simples como uma ameba ou tão complexo como uma pessoa, reage a um estímulo ambiental de uma forma que ela tenha mais chances de sobreviver e se reproduzir. Neurônios disparando em um determinado padrão pode acionar o cérebro para pedir a liberação de adrenalina, o que faz o coração bater mais rápido, sinalando a um animal para lutar ou fugir do perigo. É um estado físico que também pode ser caracterizado como emoção.

Em Parasyte isto é expresso no comportamento dos parasitas. Inicialmente, eles agem de modo completamente primitivo e sem grande intelecto, são apenas bestas seguindo o extinto de se alimentarem e se esconderem do perigo, mas sem inteligência. Com o passar do tempo e convívio na sociedade humana, eles vão gradualmente adquirindo inteligência e se integrando à comunidade. Não matam mais aleatoriamente e passam a seguir um certo padrão. Alguns desenvolvem até expressões bem humanas, enquanto outros começam a adquirir sentimentos, embora ainda não consigam entender completamente este dilema que os aflige.
É uma história muito, muito simples, sobre coexistência e evolução/crescimento. Basta pensarmos que os parasitas agiam da mesma forma que o ser humano primitivo, mas que para sobreviverem e triunfarem na cadeia evolutiva precisaram evoluir e se adequar ao ambiente. E não continuamos evoluindo como seres humanos? Basta olharmos para algumas poucas décadas atrás e constatarmos na discriminação racial e misoginia, o quanto ainda éramos arraigadamente primitivos – em alguns anos evoluímos bastante, mas ainda lutamos contra a herança dos nossos antepassados e continuamos evoluindo, e parte deste preconceito homofobico, está justamente neste componente animal, afinal, a função primária do ser vivo está na reprodução da espécie, mas de alguma forma nós evoluímos tanto que o sexo não é mais exclusivamente para reprodução, mas principalmente para o prazer. Da mesma forma, o ser humano está longe de sequer chegar perto da ameaça de ser erradicado. Os tempos mudam e os valores também.

A fim de sobreviverem e movidos pela curiosidade, os parasitas se integram à sociedade e estudam adquirindo intelecto avançado, alguns até deixando de se alimentar de pessoas. Em direção oposta, Shinichi luta para não perder sua humanidade. No inicio, parasitas devoravam vorazmente carne humana. A humanidade não sente pudor em fazer o mesmo com carne animal. Ambos buscam na alimentação a sobrevivência. Guardadas as devidas exceções você não comeria uma galinha se ela expressasse emoções humanas ou estreito laço afetivo (por este motivo, a rigor, ninguém cria galinhas como animais de estimação) contigo. Seguindo essa lógica, a linha entre ser humano e animal é bem tênue. Iwaaki ilustra isto criando um contraste interessante: geralmente os parasitas possuem um rosto inexpressivo, mas com o avanço da história, aparece um que dominou todas as expressões humanas, com Shinichi relutando inicialmente em ataca-lo justamente por ele se assemelhar demais a um ser humano comum.

Somos moldados pelo ambiente que nos cerca. Os parasitas podem copular, mas é curioso que apesar disto seus bebês nascem humanos e não como monstros famintos. A lógica do autor é de que os corpos que conceberam a criança são humanos mesmo que estejam controlados pelos vermes. Fica implícito de que eles não podem se reproduzir como especie mutante, levantando questionamentos sobre sua verdadeira natureza. Há quem diga que eles são organismos criados artificialmente e jogados sobre a superfície da terra a fim de erradicar parte da população [os verdadeiros parasitas] para restaurar o equilíbrio natural do planeta terra. Mas quem faria isso? O misterioso prefeito que aparece em determinado ponto da história estaria envolvido? É provável que nunca saibamos de fato. 

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Parasyte tem o ritmo de um trem-bala, é frenético e contagiante, é excelente. Lembrou-me bastante o ritmo de Mirai Nikki, que também é intenso, inclusive no teor cômico que permeia o mangá, mesmo com toda a tragédia que assola ao protagonista. Essa narrativa empolgante compensa pela arte rudimentar (que particularmente eu gostei) e falta de senso cinético do autor, que ainda não tinha grande controle sobre a sua mão, criando algumas páginas de proporções duvidosas e sequencias de ação sem grande impacto visual. E mesmo com toda a violência gráfica, a arte de Parasyte é bem limpa, consequentemente mesmo as cenas mais violentas não causam repulsa. Falando da narrativa, algo que chama a atenção é a estruturação das histórias, que inicialmente segue um ritmo mais episódico, privilegiando o desenvolvimento de Shinichi e sua relação com os demais. Os personagens centrais são introduzidos gradativamente, dando um tempo de absorção para cada trama. Chama a atenção a relação de Shinichi com sua amiga-namorada Satomi Murano; eles tem aquele tipo de relacionamento clássico, não declarado, de amigos de infância que crescem se gostando e quando mal percebem, estão numa linha bem tênue entre amor e amizade, sem que nada seja dito verbalmente. É atraente a forma como o autor ilustra isto, e apesar do romance nunca ser de fato o centro da narrativa, ele desempenha um papel importante para o protagonista, que é salvo através dele.
O que é o amor? Para os seres humanos é uma emoção que pode ser o maior antídoto para a miséria, e uma das principais causas da miséria. Se entendermos ao menos essencialmente este paradoxo, o final de Parasyte se torna ainda mais satisfatório. É o último degrau entre a adolescência e a vida adulta e onde seria definido se nosso protagonista levaria uma vida miserável ou redentora. Você não pode lidar com todas as mazelas do mundo nem colar o que se quebrou, mas pode continuar seguindo adiante, e isto é certamente o mais difícil. Durante este processo, ter algo para se apegar, um objetivo claro em mente, pode ser a diferença entre a queda e a chegada ao pico do monte.

Nota: 08/10
Autor: Hitoshi Iwaaki
Ano: 1988~1995
Demografia: Seinen (Kodansha)
Volumes: 10
Página: MAL

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