A história de coexistência entre distintos seres vivos [plantas, animais, pessoas] e a dificuldade de compreensão mutua, ganhadora do Prêmio Seiun e Kodansha Manga Award.
A primeira vez que ouvi falar de Parasyte (literalmente Kiseijuu, que é também o título original), acho que foi em 2012, a minha reação foi de “WOW!!!! Alienígenas que usam o corpo humano como hospedeiro, parece legal”. Essa premissa foi e é bastante utilizada no gênero de horror, teve sua rápida popularização principalmente devido a “filmes b” antigos e literatura pulp (historias rápidas feitas em papel barato, semelhante ao “papel jornal”), tendo seu auge nos anos de 1970. A fórmula de Parasyte remonta a esta época, inclusive na arte do autor Hitoshi Iwaaki, com design de monstros asquerosamente orgânicos. É inevitável pensar em The Thing (O Enigma de Outro Mundo), The Fly (A Mosca), entre tantos outros. São obras em que os monstros são pegajosos, grotescos e com designs engenhosos que apavoraram uma geração antes mesmo da nossa fantástica [e muitas vezes fria] era digital.
Minha segunda reação foi mais épica, porque tenho o costume
de jogar o título que me desperta interesse no Google imagens para ter uma
ideia visual da obra, e com o quê me deparo:
***
Certa noite, esporos estranhos começam a cair sob a terra. Esses
esporos se desenvolvem em formas de larvas e ao avistar um hospedeiro vivo,
rapidamente se infiltram em seu corpo e tomam o controle das funções motoras do
hospedeiro. O alvo destes vermes parasitas é a cabeça do hospedeiro, matando a
vítima e assumindo o corpo. Parasitas possuem um apetite voraz por carne das
espécies humanas, o que os tornam nosso predador natural – lembra-se das aulas
de biologia em que os professores sempre diziam que a espécie humana ainda não
tinha um predador natural? Parasyte é a história do “e se existisse um...?”.
Shinichi Izumi é um estudante de 17 anos que se tornará
vitima de um destes organismos parasitários, mas para a sua sorte, ele estava
usando fones de ouvido, obrigando o parasita a perfurar e invadir sua mão
direita. Shinichi pensa que é uma cobra e amarra um elástico [ou algo do tipo]
no braço, prendendo a circulação do sangue e impedindo que o parasita chegasse
à sua cabeça. Impedido de atingir o cérebro de Shinichi, o parasita toma o
controle de sua mão direita, e então eles desenvolverão uma curiosa coexistência
pacífica.
Parasyte apesar de ter sido publicado numa revista para
jovens adultos (seinen) é
estruturado como um battle shounen,
mesma fórmula de outros mangás seinens, como Gantz e Akame ga Kill, em que a
faixa etária da demografia permite a utilização de recursos visuais e
narrativos mais extremos [como a violência e o sexo], além de uma liberdade
maior no modo como o autor desenvolve esta estrutura. Em Parasyte, por exemplo,
há o mote clássico do protagonista fraco e confuso/indeciso (adolescência) em relação ao seu
futuro, mas que em algum ponto ao se deparar com uma muralha intransponível (os conflitos que surgem neste período de
transição, assim como as perdas inevitáveis) e sofrer com estas
adversidades – se sentindo fraco e impotente – irá desejar se tornar forte para
bater de frente com os desafios que se colocarão diante dele, alcançando o
último degrau apenas no fim da jornada (fase
adulta). Sim, há, mas o autor tem a liberdade de imprimir um ritmo diferente
do que uma serialização para um publica infanto-juvenil exigiria. As lutas
estão lá, mas são tão esporádicas e muitas vezes apenas como um aspecto de
caracterização, que grande charme da obra está realmente no desenvolvimento do
personagem e na forma bem humorada que o autor conduz os eventos.
Eu não comentei ainda, mas estes parasitas depois de
infectarem suas vítimas e assumirem seu corpo, eles podem assumir qualquer
forma que quiserem e criar diversos tipos de armas cortantes com seu corpo (bem ao estilo de NaruTaru). São
criaturas metamórficas, o que faz com que seja aparentemente difícil de captura-los
ou ao menos saber quem são, tornando-os uma ameaça abominável. Aparentemente.
A arte conceitual de Iwaaki para os parasitas é
organicamente fabulosa, e embora não seja extremamente detalhada, fascina pelo
teor viscoso e a incrível distinção entre um e outro, há vários projetos bem
atraentes. Cada qual possuem características bem particulares. Isto acaba
pesando um pouco para os embates físicos, mas o que chama atenção realmente são
as boas estratégias de lutas criadas pelo autor. São simples, mas funcionais o
suficiente para convencer de que um mais fraco é capaz de vencer o mais forte
pelo raciocínio.
***
No decorrer de Parasyte, Iwaaki tece várias reflexões sobre
coexistência e emoção humana. Shinichi dá para sua mão direita o nome de Migi (“mão direita” em japonês), mas este
não consegue entender o significado do seu gesto. Ele não tem emoções humanas e
seu raciocínio é extremamente lógico e racional. Esta inesperada ligação simbiótica
faz com que um não possa viver sem o outro, proporcionando uma mutua cooperação,
mas também muitos conflitos. Migi não se importa com nada nem ninguém além de
sua própria sobrevivência, enquanto Shinichi deseja salvar as pessoas da ameaça
que os parasitas representam.
Os parasitas até lembram bastante o Kyuubey de Madoka Magica, mas o próprio tropo dos alienígenas é associado com esta dificuldade
de entender os valores e emoções humanas, sendo utilizado como um recurso dramática
em muitas narrativas, como no já citado Madoka Magica. A razão é que o alienígena
representa o medo primário do ser humano, o medo das ameaças desconhecidas, implacáveis
e indecifráveis, muito além do nosso controle. Nos são incompreensíveis e
portanto, emocionalmente vazios aos
nossos olhos.
Diante das perdas inevitáveis de pessoas queridas que foram
feridas ou mortas pelo simples fato de terem uma ligação com ele, o fato de ser obrigado a matar pessoas e
principalmente pela relação simbiótica com Migi que vai se fortalecendo cada
vez mais, Shinichi vai mudando gradualmente, se tornando cada vez mais frio e
insensível, contrastando com o Shinichi que os personagens conheciam antes dele
se ligar a Migi – o Shinichi de antes era fraco, mas sensível e expressivo, o
de agora é forte, mas de alguma forma parece ter perdido parte de sua humanidade.
Ao ler Parasyte, frequentemente você verá algum personagem ligado a Shinichi o
indagando se ele é mesmo o Shinichi, se ele é mesmo um ser humano, e quem é
ele. É um recurso do autor para evidenciar a mutação do personagem que vai
gradativamente se transformando, mas também reflexo em relação a natureza
humana e os questionamentos da narrativa.
Não só alienígenas, mas constantemente máquinas (androides, consciência artificial, robôs,
etc) e monstros/vampiros também
são utilizados para expressar a dicotomia entre ser humano (que significa ter emoções) e ser qualquer outra coisa [um objeto,
uma ferramenta, um monstro, etc.]. Assume-se que ter sentimentos e a capacidade
de ler emoções nos outros é uma característica humana. E sentimo-nos superiores,
porque nós nos emocionamos, sentimos. É um pensamento equivocado, longe de ser inexplicável,
as emoções podem ser nada mais do que um resposta autonômica a mudanças em
nosso ambiente e a necessidade de se adequar a ele para sobreviver e passar os
genes adiante, evitando a extinção da raça. É como um software programado no
nosso hardware biológico pela evolução como uma resposta para a sobrevivência.
Estudos de neurociência descrevem a emoção como “circuitos
de sobrevivência” que existem em todos os seres vivos. Um organismo, tão
simples como uma ameba ou tão complexo como uma pessoa, reage a um estímulo
ambiental de uma forma que ela tenha mais chances de sobreviver e se
reproduzir. Neurônios disparando em um determinado padrão pode acionar o
cérebro para pedir a liberação de adrenalina, o que faz o coração bater mais
rápido, sinalando a um animal para lutar ou fugir do perigo. É um estado físico
que também pode ser caracterizado como emoção.
Em Parasyte isto é expresso no comportamento dos parasitas.
Inicialmente, eles agem de modo completamente primitivo e sem grande intelecto,
são apenas bestas seguindo o extinto de se alimentarem e se esconderem do
perigo, mas sem inteligência. Com o passar do tempo e convívio na sociedade
humana, eles vão gradualmente adquirindo inteligência e se integrando à
comunidade. Não matam mais aleatoriamente e passam a seguir um certo padrão. Alguns
desenvolvem até expressões bem humanas, enquanto outros começam a adquirir
sentimentos, embora ainda não consigam entender completamente este dilema que
os aflige.
É uma história muito, muito simples, sobre coexistência e
evolução/crescimento. Basta pensarmos que os parasitas agiam da mesma forma que
o ser humano primitivo, mas que para sobreviverem e triunfarem na cadeia
evolutiva precisaram evoluir e se adequar ao ambiente. E não continuamos
evoluindo como seres humanos? Basta olharmos para algumas poucas décadas atrás
e constatarmos na discriminação racial e misoginia, o quanto ainda éramos
arraigadamente primitivos – em alguns anos evoluímos bastante, mas ainda lutamos
contra a herança dos nossos antepassados e continuamos evoluindo, e parte deste
preconceito homofobico, está justamente neste componente animal, afinal, a
função primária do ser vivo está na reprodução da espécie, mas de alguma forma
nós evoluímos tanto que o sexo não é mais exclusivamente para reprodução, mas
principalmente para o prazer. Da mesma forma, o ser humano está longe de sequer
chegar perto da ameaça de ser erradicado. Os tempos mudam e os valores também.
A fim de sobreviverem e movidos pela curiosidade, os
parasitas se integram à sociedade e estudam adquirindo intelecto avançado,
alguns até deixando de se alimentar de pessoas. Em direção oposta, Shinichi
luta para não perder sua humanidade. No inicio, parasitas devoravam vorazmente
carne humana. A humanidade não sente pudor em fazer o mesmo com carne animal.
Ambos buscam na alimentação a sobrevivência. Guardadas as devidas exceções você
não comeria uma galinha se ela expressasse emoções humanas ou estreito laço afetivo
(por este motivo, a rigor, ninguém cria
galinhas como animais de estimação) contigo. Seguindo essa lógica, a linha
entre ser humano e animal é bem tênue. Iwaaki ilustra isto criando um contraste
interessante: geralmente os parasitas possuem um rosto inexpressivo, mas com o
avanço da história, aparece um que dominou todas as expressões humanas, com
Shinichi relutando inicialmente em ataca-lo justamente por ele se assemelhar
demais a um ser humano comum.
Somos moldados pelo ambiente que nos cerca. Os parasitas
podem copular, mas é curioso que apesar disto seus bebês nascem humanos e não
como monstros famintos. A lógica do autor é de que os corpos que conceberam a
criança são humanos mesmo que estejam controlados pelos vermes. Fica implícito de que eles não podem se reproduzir como especie mutante, levantando questionamentos sobre sua verdadeira natureza. Há quem diga que eles são organismos criados artificialmente e jogados sobre a superfície da terra a fim de erradicar parte da população [os verdadeiros parasitas] para restaurar o equilíbrio natural do planeta terra. Mas quem faria isso? O misterioso prefeito que aparece em determinado ponto da história estaria envolvido? É provável que nunca saibamos de fato.
***
Parasyte tem o ritmo de um trem-bala, é frenético e
contagiante, é excelente. Lembrou-me bastante o ritmo de Mirai Nikki, que também
é intenso, inclusive no teor cômico que permeia o mangá, mesmo com toda a tragédia que assola ao protagonista. Essa narrativa
empolgante compensa pela arte rudimentar (que
particularmente eu gostei) e falta de senso cinético do autor, que ainda
não tinha grande controle sobre a sua mão, criando algumas páginas de
proporções duvidosas e sequencias de ação sem grande impacto visual. E mesmo
com toda a violência gráfica, a arte de Parasyte é bem limpa, consequentemente
mesmo as cenas mais violentas não causam repulsa. Falando da narrativa, algo
que chama a atenção é a estruturação das histórias, que inicialmente segue um
ritmo mais episódico, privilegiando o desenvolvimento de Shinichi e sua relação
com os demais. Os personagens centrais são introduzidos gradativamente, dando
um tempo de absorção para cada trama. Chama a atenção a relação de Shinichi com
sua amiga-namorada Satomi Murano; eles tem aquele tipo de relacionamento
clássico, não declarado, de amigos de infância que crescem se gostando e quando
mal percebem, estão numa linha bem tênue entre amor e amizade, sem que nada
seja dito verbalmente. É atraente a forma como o autor ilustra isto, e apesar
do romance nunca ser de fato o centro da narrativa, ele desempenha um papel importante
para o protagonista, que é salvo através dele.
O que é o amor? Para os seres humanos é uma emoção que pode
ser o maior antídoto para a miséria, e uma das principais causas da miséria. Se
entendermos ao menos essencialmente este paradoxo, o final de Parasyte se torna
ainda mais satisfatório. É o último degrau entre a adolescência e a vida adulta e
onde seria definido se nosso protagonista levaria uma vida miserável ou
redentora. Você não pode lidar com todas as mazelas do mundo nem colar o que se
quebrou, mas pode continuar seguindo adiante, e isto é certamente o mais
difícil. Durante este processo, ter algo para se apegar, um objetivo claro em
mente, pode ser a diferença entre a queda e a chegada ao pico do monte.
Nota: 08/10
Autor: Hitoshi Iwaaki
Ano: 1988~1995
Demografia: Seinen (Kodansha)
Volumes: 10
Página: MAL
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Nota: 08/10
Autor: Hitoshi Iwaaki
Ano: 1988~1995
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Volumes: 10
Página: MAL
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