Em certo momento de O Reino dos Sonhos e da Loucura, Hayao Miyazaki se pergunta “Como
posso, aos 70 anos, ainda estar desenhando?”. Muitos minutos de filme depois
(e meses de vida real), terminando um dia exaustivo de trabalho, sai de lá
sozinho à noite resmungando quase que para si mesmo: “Amanhã vou desenhar melhor [que hoje]’”. E é fascinante notar o
incontido perfeccionismo desse famoso artista, um dos cabeças do Studio Ghibli,
que em pleno século XXI (ele parece amaldiçoar esses tempos) continua criando
filmes desenhados quadro a quadro. E esse é só um dos inúmeros aspectos que
esse maravilhoso documentário aborda.
Aliás, se em minha crítica de The King of Pigs confessei que meu país cinematográfico favorito era a Coréia do Sul, finalmente encontrei a oportunidade perfeita para revelar o meu gênero favorito, mundialmente falando: documentários. E se você tem em mente que esse gênero é o mesmo que aquelas matérias do Discovery Channel, não poderia estar mais enganado. Aliás, os artistas retratados nesse doc sobre o Studio Ghibli, seu perfeccionismo ao ponto de torná-los arrogantes embora não menos belos, não são tão diferentes de outros retratados nos absolutamente fenomenais: Jodorowky’s Dune; ou o vencedor ao Oscar, Man on Wire; ou os magos de The King of Kong, os feiticeiros de Koran by Heart (crianças que decoram o Alcorão inteiro. Aham.) ou os bruxos de Wordplay; e me arrisco incluir até O Homem Urso do mestre Herzog.
Dirigido pela Mami Sunada, sua equipe acompanha
a rotina do estúdio no período de criação do seu último filme, “Vidas ao Vento”.
E mesmo que Miyazaki seja inegavelmente o mais fascinante, o documentário
constrói inúmeros personagens tridimensionais e que nos gera interesse. Em
especial o produtor responsável por divulgar o filme em tours e coletivas de
imprensa, Suzuki; passando pela adorável Sankichi, gerente de produção e braço
direito de Miyazaki, ela é quase uma personagem de anime; até mesmo o
introspectivo dublador do protagonista, Hideaki Anno; o filho de Hayao, Goro, com sinceras dúvidas se
a área de animação é o que ele realmente quer fazer da vida; e não menos importante, o
velho gato Ushiko, que parece ter encontrado o lugar ideal para passar os seus
dias. E é interessante fazer um paralelo de semelhanças entre o já não tão
energético animal de pelo branco e Hayao Miyazaki.
Situado em um local privilegiado, o Studio
Ghibli pode não ser um Google, mas definitivamente possui sua magia própria. E
o telhado em que Miyazaki constantemente vai para fumar, parece ter saído de
algum de seus filmes, tamanha a beleza. Já o interior do local é mais comum do
que poderíamos imaginar, embora repleto de almofadas de Totoro e cartazes de
sua galeria de filmes. Além de inúmeras frases coladas em portas e paredes,
buscando incentivar seus funcionários para atingirem a excelência que a empresa
busca. E é revelador alguns relatos contidos de que Miyazaki é temido por
grande parte do “chão de fábrica”, constantemente corrigindo os trabalhos
alheios e buscando a perfeição. E as auto demissões são constantes, provando
que o título do filme não poderia ser mais correto e que não só de sonhos é
feito esse reino.
Porém, o doc não sobreviveria apenas trancado
em quatro paredes vendo artistas desenhando, e a diretora Mami Sunada vai além
em inúmeras questões importantes. Em uma reunião de produtos licenciados, por
exemplo, Suzuki levanta uma questão inteligente “O marketing se concentra nas crianças, mas quem mais compra são os
adultos”. Também é comovente ver um artista com a idade e reconhecimento de
Hayao, desabafando em como os tempos estão mudando para o Cinema. Obras sem
dedicação nenhuma e feitas às pressas são sucessos de bilheteria, enquanto
esses magos da animação vivem atrasando prazos e trabalhando até tarde para
concluir com preciosismo seu trabalho. Outro motivo de preocupação que atinge
os criadores de Vidas ao Vento é encontrar boas vozes para os seus personagens,
pois as agências parecem empurrar apenas atores famosos, não dubladores
(Enrolados? Luciano Huck? Alguém?). Como se não bastasse, a gigantesca emissora
NHK quer dizer o que eles devem ou não abordar em seus filmes, literalmente uma
censura do setor privado.
Abordando também a relação de admiração e
rivalidade entre Miyazaki e Paku-san (Isao Takahata), que fazia O Conto da Princesa Kaguya simultaneamente com Vidas ao Vento. É como se alavancassem
um ao outro, e quando vemos os dois juntos e ouvimos Takahata falar de Hayao
pela primeira vez, é um poço de admiração e elogios. Outra relação sútil que o
documentário consegue revelar é a relação de Miyazaki com seu pai.
Constantemente perturbado por estar desenhando armas de guerra, semelhante ao
que seu pai fazia (vendia peças de aviões de caças e Hayao brigava por isso),
ocorre uma reviravolta interessante no decorrer do filme. Ao receber a carta de
um ex vizinho de infância contando como seu pai o ajudou, é tocante o alívio de
Miyazaki ao perceber a bondade e generosidade de seu progenitor.
Mas
quem carrega mesmo o documentário é o seu inigualável protagonista. Abrindo um
sorriso marcante com facilidade, vemos todas suas facetas ao longo do filme:
nervoso com inúmeras questões do seu negócio, pensativo trabalhando, chorando
com seu próprio filme, alegre com as crianças de uma escolinha que ele tanto
preza. E em certo momento em me perguntava porque o estúdio tinha esse nome, e
alguns minutos depois recebo a resposta mais descompromissada possível do
próprio “Ghibli é só um nome que peguei
de um avião. Não significa nada, é só um nome”. Hayao, aliás, cultiva o
hábito de admirar a natureza por longos períodos. Desta forma, quando uma
vendedora está em sua sala entregando sucos, ele comenta com uma alegria quase
infantil o fato de estar nevando lá fora (enquanto a vendedora reage com
depreciação). E em outro instante, no incrível telhado verde, ele conversa com
a equipe de documentarista e subitamente comenta “Olha só, que bonito” e se
afasta hipnotizado pela beleza de uma das árvores.
Esse cuidado e carinho pelas pequenas coisas é
que acabam fazendo essa jornada tão prazerosa.
(Para mais dos meus textos, é só ir no menu 'Crítico Nippon'.)
Twitter: @PedroSEkman
resenha, crítica, análise, review, documentário, Ghibli, Hayao Miyazaki, Isao Takahata, The Kingdom of Dreams and Madness, Yume to kyôki no ohkoku
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