sexta-feira, 24 de julho de 2015

Anne Freaks (2000): Violência Fascinante

Quando uma psicopata cruza a vida de um garoto.
Pense em Bonnie e Clyde - Uma Rajada de Balas (1967), filme baseado em uma história real sobre dois jovens que se conhecem de forma inusitada, acabam se apaixonando e se tornam uma das duplas de assaltantes mais famosas de toda a história americana, um clássico que impactou o publico de sua época em sua representação da violência, com agudo comentário social. É uma história construída com um olhar muito romântico, onde a dubla de anti-heróis não apontam a arma para pobres trabalhadores, na sua mira está sempre a classe privilegiada. Ainda que troquem tiros e zombem da polícia, seqüestrem e barbarizem, eles nunca tiram uma vida gratuitamente. Eles, na verdade, são bem mocinhos; transgressores que se equilibram entre dois lados.
Agora pense em Anne Freaks como uma antítese. A protagonista Anne tem gosto por matar pessoas, e ela mata, por vezes por mero capricho. Por vezes com requintes de crueldade e sadismo. Ela não está buscando uma aventura pra sair da monotonia diária, mas procurando preencher um vazio insolúvel até o fim. Yuri Kitagawa, seu novo parceiro e interesse romântico, vê em Anne uma garota-problema altamente sedutora da qual não consegue tirar os olhos – ela exala um tipo de charme que somente garotas quebradas e problemáticas possuem, ao despertar um desejo de proteção e salvação na outra parte. No entanto, Yuri jamais é verdadeiramente correspondido. E ele está bem com isso. Enquanto Anne vê em Yuri o seu apoio emocional, que a aceita incondicionalmente, o único no qual ela pode contar. 

Anne Freaks tem este aspecto bastante verdadeiro e duro em relação aos eventos que transcorrem na história, que bate de frente e entra em conflito com a moral particular das pessoas, ao não optar por ações e resoluções moralistas, indo mais por um norte acinzentado e irrepreensivelmente vago.  

A partir disto, se entende o sentido do título “Anne Freaks”, sendo a personagem-título encarada como um monstro, uma criatura bizarra em desacordo com a sociedade. Mas Anne, assim como sua ferida não cicatrizada, é uma criação desta mesma sociedade. Anne Freaks é sobre vários filhos de um culto religioso que se assemelha ao Aum Shinrikyo (dica de leitura: Believers: Hikikomori, Aum Shinrikyo, e o Culto), que foi o responsável pelo ataque com gás sarin em Tóquio, em 1995. Anne era uma dessas crianças, cujas vidas foram tomadas em prol de um idílico ideal maníaco-religioso. Agora ela busca vingança...contra o seu próprio pai, um dos membros-fundadores da seita, ao lado dos pai de Yuri Kitagawa. Com Yuri, e Mitsuba Maezona, outro filho perdido do culto, Anne vai investir com tudo para cima dos remanescentes do grupo extremista, à procura de seu pai, para matá-lo. Criada em um ambiente fechado, quase como se fosse um objeto manuseado por várias mãos, Anne não conhece outro modo de vida que não seja o de alcançar o que deseja pela violência. É neste sentido que o seu vácuo interior jamais pode ser preenchido, pois é através desta violência, e somente por ela, que sente o sangue ferver e a vida voltar as suas faces. 

Esta história apresenta filhos em busca de vingança contra seus progenitores, não importando realmente os seus pontos de vista. Anne quer matar seu pai, enquanto Yuri “matou” a sua própria mãe. Cometendo atos bárbaros, Anne é uma personagem que desde o inicio se mostra irrecuperável, enquanto que Yuri, ao lado dela, vive uma espiral decrescente, onde ele vai de bom garoto estudioso, a alguém incapaz de alcançar a redenção. Ao longo de seus quatro volumes, o mangá representa um enigma complexo, em última análise: o que é a justiça? É bastante compreensível desejo de Anne de vingança? Será que a justiça habitará nos esforços por parte da polícia para destruir o culto, matando todos eles, incluindo Anne e seus amigos? Ou será que a justiça reside na cura desses jovens e trazê-los de volta na sociedade normal, como bons cidadãos? Cada visão é representado por um personagem diferente, cada um obcecado por seu próprio ponto de vista, cada visão profundamente incompatível com os demais. Mas, acima de tudo, a salvação e redenção são possíveis? Estes filhos perdidos ainda podem ser salvos através desta mesma sociedade? 
O questionamento acerca de adolescentes que perdem a fé no sistema e seus em próprios pais; no próprio país, se voltando contra aquilo que os projetaram, é a grande investida da autora Yua Kotegawa, que também fez Line, em Anne Freaks. Por um lado há representado aquele perfil da sociedade que acredita no diálogo e compreensão como método para a redenção, e há também o que entende que somente através da repressão e punição, se poderá alcançar resultados satisfatórios. É, portanto, uma obra que dialoga bastante com o cenário social do Brasil atual – jovens criando desordem e mal estar social em ataques sucessivos contra a ordem, ostentando sua total indiferença com as leis. Qual o melhor caminho? A história é cheia destes questionamentos, embora nunca os responda diretamente, é bastante dura e contundente ao se chegar na obvia constatação, de que a violência é o reflexo da própria violência, sendo este um ciclo infinito. Yua Kotegawa merece consideração por levar seus personagens e enredo além dos limites impostos pelo sentido comum. O que se tira disto, é uma bela amostra de estrutura que não faz concessões ao desejo coletivo por uma história fechada e quadrada. 

No entanto, isto é apenas em um nível estrutural da premissa. A construção, por outro lado, é caótica. Diálogos insossos e metódicos, extremamente mecânicos e sem vida própria, soam como se fosse algo escrito por um adolescente que ainda não alcançou sua maturidade criativa no ensino médio. A progressão das tramas dos personagens, seu relacionamento, e o modo como se envolvem naquele universo da Anne soam terrivelmente desarticulados, fora do tempo adequado – sentem-se como peças que não se encaixam da forma que deveria, por estarem repletas de arestas. Assim é Anne Freaks, uma obra com premissa e atitude, mas que se perde na falta de carpintaria de sua autora. Não apenas no nível do texto, a história se perde nos layouts e construções dos quadros das páginas, que fazem com que a ação pareça travada e sem vida para o seu conteúdo, pois não há cinética. É claro que quando se lê uma obra, nem tudo é perda. Há ganhos também, que muitas vezes não se reflete na avaliação final. Como se vê no texto, preferi me centrar num dos aspectos que considerei mais atraente em Anne Freaks, na ausência de um melhor desempenho de articulação narrativa, mas ainda é uma obra que me bate com um ritmo sincopado que não auxilia nem um pouco na experiência de leitura.

Contudo, é curioso como o final, com seu senso de humor e certa visão romântica da coisa toda, quase me fez esquecer os equívocos que quase me fizeram abandonar Anne Freaks antes do termino. Mas é uma pontinha de prazer que não valida toda a experiência. 

Nota: 04/10
Autora Yu Kotegawa
Serialização: Shounen Ace (Kadokawa Shoten) 
Demográfico: Shounen
Volumes: 4 (encerrado)

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