"Neste mundo, o destino do homem é controlado por alguma lei ou
entidade transcendental. Ao menos o homem sabe que não tem controle sobre sua
própria vontade" – Assim começa simpática produção da versão tv de
Berserk, produzida pelo desconhecido estúdio OLM, ainda em 1997. Digo simpática,
porque os valores de produção realmente eram limitados, contudo havia ali toda
a essência do material de origem que o tornara em um épico tão denso. Com um
bom traço, boas expressões, visualmente agradável e com aquele algo de sujo que
a atmosfera pede certamente uma produção ainda hoje marcante apesar do [óbvio]
orçamento limitado.
Ougon Jidai-Hen I: Haou no Tamago (A Era de Ouro I: O Ovo do Supremo Rei), é o primeiro filme da
trilogia, que funciona como um remake do clássico anime de 1997. Essa trilogia é
uma releitura do famoso e icônico arco do mangá, intitulado “A Era de Ouro” (The Golden Age), que conta o passado
de Guts e a ascensão e queda do Bando do Falcão, que é liderado por Griffith.
Berserk é o que chamamos de mangá best-seller, já tendo vendido mais de 30
milhões em todo o mundo, é escrito pelo preguiçoso Kentaro Miura desde 1989 até
os dias atuais e segundo o próprio, sua história ainda está praticamente na
metade, o que nos dá muitos e muitos anos de publicação, levando em conta o
espaçamento entre uma edição e outra.
Berserk é um épico alucinante que nos traz um conto de
fantasia medieval, trazendo a tona o belíssimo cenário europeu, com uma trama
obscura, extremamente violenta e angustiante – Que na verdade, nada mais é que
um cenário para a complexa relação de seus personagens.
No primeiro filme, nós temos o solitário Guts que peregrina
livremente e sem destino certo em meio a uma guerra incessante de 100 anos.
Ocasionalmente, ao se aliar a um grupo de mercenários por motivos [obviamente] econômicos,
sua ferocidade e habilidade para derrubar inimigos, acaba atraindo a atenção de
Griffith, líder do grupo de mercenários chamado “Bando do Falcão”, que logicamente,
faz questão de contar com as habilidades de Guts. E claro, o Guts é arredio,
truculento, quase um animal selvagem, não iria aceitar tal proposta. E aqui,
Berserk brilha: Na interação dos seus carismáticos personagens, seja no
conflituoso relacionamento entre eles, lutando contra adversários ou até mesmo
entre si próprios. Quanto Guts e Griffith lutam juntos no campo de batalha,
eles se complementam perfeitamente e aos poucos, e com suas continuas vitórias,
o vínculo e confiança mútua entre eles se aprofunda. Guts com sua gigantesca
espada, força bruta e sua incrível resistência, Griffith por sua vez, faz uso
de seu afiado intelecto e agilidade. E assim, Griffith desafia Guts, dizendo
que se o derrotasse a partir daquele momento ele seria propriedade dele e o
seguiria por onde fosse até que o seu sonho se fizesse realidade.
O engraçado é que, olhando pelas sinopses ou até mesmo lendo
as primeiras páginas do mangá, você tem a ideia de que estes personagens não
passam de arquétipos pré-moldados, e inicialmente, realmente pode se ver dessa
forma. Não importa como se olhe, eles são os típicos personagens clichês,
incluindo a história. Mas com o passar do tempo você vai percebendo todo um
desenvolvimento, ao ponto dessas personagens se tornarem incrivelmente reais para
você, que passa de um estado de “degustação” para o “sentir”. Guts de um
espadachim solitário e praticamente invencível, para alguém atormentado por seu
passado obscuro. Griffith, de um bishounen com personalidade fria e uma
inteligência acima da média, se mostra um sujeito ambicioso e manipulador. Sua
aparente calma esconde uma áurea assustadora e com o tempo, você percebe que o
personagem também tem um passado do qual gostaria de esquecer. Por sua vez, a explosiva
Caska, a parte feminina da história que a despeito de todas as coisas as quais
precisa se sujeitar simplesmente por ser mulher [como o fato de ter que dormir
nua ao lado de Guts para lhe aquecer], se mostra uma personagem extremamente
forte em personalidade. Também esconde um passado de dor, com abusos físicos e psicológicos
que moldaram a forma como ela é; forte, corajosa, orgulhosa, séria, fragilizada,
assustada.
Berserk é a típica história onde o diferencial não está no
que acontece e sim COMO acontece e como isso afeta seus personagens que por sua
vez, queremos ver como estes reagem a isso. Miura explora seus personagens com
maestria, tornando seus conflitos [internos e externos] algo pautável. A
intricada teia de relações que se desenvolve entre todos os personagens do
bando [que são muitos e cada um com sua característica] traz a tona o que há de
melhor e pior no ser humano expostos de uma forma visceral. O “Ovo do supremo
rei” ao qual o título se refere nada mais é que o Behelit, objeto mágico que garante a Griffith força sobrenatural e
invencibilidade através do pacto com a entidade “A Mão de Deus”, com isso ele
criará conspirações e sacrificará fieis companheiros no objetivo de se tornar
um Rei, até que, como podemos ver na parte final do filme, Guts começa a questionar
suas razões para lutar pelo sonho daquele que tanto admira e sua obsessão pelo
poder. E esse é obviamente apenas a
pontinha do iceberg.
Produzido pelo competente estúdio 4ºC, casa de pequenas pérolas
como Digital Juice, Amazing Nuts! e o completamente zoado Detroit Metal City – O Ovo do Supremo Rei não tem o refinamento
[as vezes artesanal] que já é caraterística do estúdio. Esse primeiro arco da
trilogia de Berserk cai no que [talvez] possamos chamar de produção industrial,
algo puramente e estritamente caça-níquel sem qualquer interesse em produzir
arte ou uma megaprodução que se torne algo referencial. Com isso, essa produção
acaba sendo um meio e não o fim, tornando o estúdio 4ºC uma empreiteira que
teve de lidar com um orçamento claramente limitado para uma produção deste
porte e com provavelmente pouco tempo de produção.
A boa notícia é que mesmo sendo perceptível de que algo está
faltando, o roteiro está dentro dos limites do aceitável. A má é que mesmo o notável
esforço da produção, o filme se mostra inferior à simpática produção de 1997 e
nada mais é que um passatempo razoável, que logo será esquecido assim que
fecharmos o player, sem causar qualquer impacto, emoção ou aquele frisson característico
de quando você acaba de assistir a uma história que se propõe a ser épica.
Dirigido pelo inexpressivo Toshiyuki Kubooka, diretor de um
dos curtas [de uma série de 6] de 5 minutos de duração de Batman – the Gotham Knight, também pelo estúdio 4ºC, O Ovo do Supremo Rei traz uma mescla de
animação 2D com 3DCG, usando a até então pouca usual em animes, tecnologia de
cell-shading e captura de movimento, o que deu aquela sensação de estar
assistindo a introdução de um game pra Play Station 2. O Cel-Shading é uma técnica
na qual objetos 3D pareçam terem sido desenhados a mão [algo beeeeeem mais
comum em games]. Se por um lado, o estúdio 4ºC poupa grana e principalmente
tempo, por outro, o filme ganha em artificialidade.
Claro que isso dá bastante em versatilidade para o diretor.
A angulação e rotação de câmera em Berserk são excelentes, com tomadas que
acrescentam à narrativa visual. Fora a facilidade dos animadores em rotacionar
os personagens e objetos em cena, o cenário e sua iluminação e claro, a
possibilidade de trabalhar com uma staff limitada como a do filme. Mas o preço
a ser pago, acaba sendo alto demais: Personagens secundários sem expressão [ou
com mesma fôrma facial] e até mesmo ausência de traços faciais (!) – Mãos, bocas, expressões faciais,
movimentação, até mesmo nos personagens principais, se torna flagrante a
artificialidade. A fotografia em alguns momentos se torna assustadora por se
parecer mais com uma proteção de tela do Windows (!!), em outros, se mostra incrivelmente bela. Bizarro é pouco para descrever a falta de tato da staff que
produziu este filme, fazendo com que a experiência em assistir ao longa seja
quase que completamente arruinada.
As cenas de batalhas (comoa invasão inicial ao castelo), de velocidade (como o cedo que o bando do Griffith faz a Guts), de lutas corpo a corpo
(como a de Guts versus Caska) perdem
completamente sentido ao que se destinam: Diversão. Você não consegue se
divertir ao olhar para tais sequências e não conseguir imergir em algo que está
flagrantemente irregular. Em determinada cena onde Caska vai tirar satisfação
com Guts e Griffith aparece, o contexto sério da narrativa se perde ao
visualizarmos um personagem se movimentando em cena como se fosse um Robocop.
Claro que tem os seus bons momentos, como na luta corpo a
corpo entre Guts e Griffith. Ou a sequência onde Guts mata uma criança – São momentos
que, mesmo não sendo puramente animação tradicional, há uma integração aceitável
entre animação tradicional e tridimensional. E aqui, a falta de uma staff
realmente experiente por trás do projeto, prejudica bastante, pois mesmo em um
orçamento mediano, dá pra se fazer algo aceitável – Como podemos ver no medíocre
[de roteiro] Black Rock Shooter TV,
que traz uma ótima integração entre animação 2D e personagens em 3DCG com
bastante sutileza.
O roteiro também deixa a desejar em um filme que se apoia
mais na ação do que no enredo propriamente dito. O tempo é curto para um filme
da densidade de Berserk, já iniciando numa sequência que em teoria, deveria ser
alucinante e cortando a introdução de suas personagens, deixando que sua
interação seja ilustrada por meio de batalhas que da forma como são colocadas,
não significam nada. A química entre Guts e Griffith continua funcionando
maravilhosamente bem e são os dois personagens que mais se beneficiaram,
ganhando cenas de diálogos mais envolventes. A relação que eles mantêm,
consegue convencer, ainda que o ritmo em volta seja frenético.
Por outro lado, Caska e os demais personagens do bando ficam
em segundo plano, com uma rápida ascensão deste grupo de mercenários. Com isso,
perde-se a essência da evolução da amizade destes personagens. Mas o tempo é
curto e por mais que você chore, um épico precisa de uma longa duração para que
possa se desenvolver satisfatoriamente. O
que não é o caso aqui, onde o roteiro é vago e condensado a um filme de ação
meia boca qualquer. Mesmo a relação entre eles ainda sendo deliciosamente sutil,
além de terem construído todo um clima que favorece a sequência, a trilha
sonora de Shiro Sagisu (Evangelion) que
apela para aquele algo épico,
suavemente orquestral e sempre no timing certo, a boa canção tema por Susumu
Hirasawa (que também criou a de Berserk
TV) – Tudo apela para algo grandioso e dá o clima para uma grande produção cinematográfica.
Infelizmente, nenhuma das coisas boas apresentadas reflete
no roteiro e na forma como este explora suas personagens e as situações por
elas vividas. Aposta no óbvio e algumas trucagens de roteiro para que tudo soe
coerente mesmo que aos “trancos e barrancos”. Mas no fim, é tudo tão artificial
que, apesar de aceitável, está longe de ser impressionante. Se ao menos
visualmente fosse bom... mas nem isso.