Tão melhor quando não há forçada de barra~
Agora sim! Estamos no nível da segunda parte do primeiro
episódio em termos de fluidez de narrativa visual, e provocou, ao menos em mim,
sentimentos tão bons quanto o da primeira parte daquele episódio.
Intitulado de “A Flauta das Memórias”, este é um episódio
carregado de referências e conflitos culturais, que levam Ledo a se questionar
sobre o sentido de viver uma vida que para ele soa sem significado. O
pensamento dele é típico de sociedades totalitárias e regimes altamente
militarizados. O ponto alto é como a narrativa trabalha de forma sutil este
choque cultural através de referências semióticas enquanto descontrói Ledo como
personagem objetivista. Uma das características do totalitarismo é a ideologia (autoritarismo + ideologia = totalitarismo)
sistematicamente reafirmada como influência coletivista. O que Ledo
aprendeu foi que sua razão de viver é o combate à Hideauze para garantir a
sobrevivência de seu povo. É um pensamento lógico e objetivo que se choca com o
modo de viver das pessoas de Gargantia, que encontram significado de viver em
aspectos simples da vida, como relacionamentos e interações sociais.
Só não precisa mostrar todos tão felizes e com sorrisos nos rostos, tá parecendo propagando do governo
Na visão objetiva de Ledo, é claro que uma estrutura social
dessas não faz o menor sentido. Manter idosos, pessoas sem capacidade física
para contribuir para o grupo, crianças que ao invés de estarem recebendo
treinamento, se divertido? Como assim, LOL!
Não é interessante que, tanto Gargantia, quanto Aliança
Galáctica são ditatoriais, com o poder absoluto exercido por militares (em Gargantia isso minimizado porque o
capitão Ferrock é um BOSTA :P)? A burocracia, como se pôde ver neste
episódio, é altíssima, além de aparentemente seguir de forma liberal diretrizes
do comunismo (isso fica subtendido na estrutura
organizacional), temos também as patentes militares [como não poderia deixar de ser, afinal de contas, Gargantia é um
encouraçado marítimo com uma favela flutuante]. Entretanto, a forma
comportamental de ambos é o que torna a disparidade entre Gargantia e Aliança Galáctica,
gigantesca.
Enquanto Aliança Galáctica tem um padrão repressivo
originado pelas situações adversas que encontraram ao chegarem no espaço (a série deu a entender em episódio
anteriores que eles são ascendentes de povos que partiram da terra numa jornada
interestelar), recorrendo a ideais patrióticos e terrorismo ideológico para
manter o controle absoluto e assim ampliar o território; Gargantia parece
querer encontrar na civilidade um refúgio do mundo pós-apocalíptico sem lei. Essa
ideia é reforçada através do discurso de Bellow no episódio anterior sobre não
matar e valorizar a vida, a filosofia de evitar o quanto for preciso bater de
frente com piratas, na estrutura social e politica de Gargantia; assim, mesmo
estando numa moradia flutuante, se sentem seguros e relaxados, pois é copia uma
estrutura de mundo primitivo que lhes permitem continuarem a serem humanos. Não importa se provavelmente
todos ali nunca chegaram a pisar em terra firme, como dito em dos diálogos do
filme Waterworld, o ser humano não foi feito para viver num mundo tomado pelas
águas.
Reciclar uma estrutura de mundo primitiva é o diferencial
das abordagens entre SnG e Waterworld com relação a moradas flutuantes, embora
parte disso se deva ao fato de que Gargantia goza de uma estrutura tecnológica invejável
para um mundo como aquele; eu sinceramente não sei como os piratas fazem vistas
grossas pra isso, tendo em vista que Gargantia [pelo que foi mostrado no episódio anterior] possui um péssimo
sistema defensivo que poderia ser tomado em 2 tempos, fácil, fácil. Qual o
motivo de respeitarem a soberania de Gargantia? Há alguma organização federal marítima
pelo qual temem? PLOT HOLE?
Enfim, não é disso que o episódio trata, embora eu não
consiga evitar estes questionamentos.
Ledo é um avatar credível para o fenômeno social contemporâneo
acerca de crianças soldados. Diariamente, crianças são desprovidas de um lar,
em prol dos interesses de um governante. Li certa vez que mais ou menos 300.000
crianças, com menos de 18 anos entre meninos e meninas, são agora combatentes,
lutando em aproximadamente 75% dos conflitos do mundo. Saddam Hussein, mesmo,
tinha a politica de recrutar crianças para as Forças Armadas do Iraque, infligindo
leis de proteção internacionais. Quando Ledo diz que desde que se conhece por
gente, eles guerreiam contra Hideauze, com o flesback daquele que parece ser o
seu pai (ou mãe..., parece ser uma mulher) o colocando numa câmera [numa
metáfora obvia de que a partir daquele momento, ele era filho do estado, uma propriedade,
uma arma militar] que o levará para longe de seus braços, eu me senti muito
tocada pela narrativa. Ledo agora estava se tornando um pouco mais humano.
Ao contrário do anterior, eu gostei muito desse roteiro, que
foi escrito por um completo novato (Toriko Nanase), ou será apenas é um pseudônimo ? O fato é que o descrito por Ledo
é uma realidade assustadora, e este é um método empregado por regimes
totalitários para não perder o controle, militarizando a sociedade e mantendo-a
em constantes conflitos de guerra, desviando as tensões internas para os inimigos
externos. Neste aspecto, os diálogos entre Bevel (Yuka Terasaki) e Ledo, se tornam um dos pontos alto do episódio.
Bevel é apaixonante e mesmo sendo maduro demais para aquela idade, suas reações
e expressões a cada resposta de Ledo conseguiam passar muita verdade.
Não importa o quão fantasioso seja desde que soe verdadeiro
e legitimo para o espectador/leitor.
Ledo diz que “Humanos como você são sacrificados
imediatamente pela Aliança Galáctica”, Bevel se choca, mas entra numa
batalha dialética com ele; “Mas se for assim, o que acontece com a Aliança
Galáctica se o Hideous for completamente derrotado? O que você faria, Ledo”,
“E
se nenhuma instrução viesse?”, “Então é igual a nós, não é?”, “Afinal,
continuar de prontidão, é continuar a viver, não?”. Embora desarmado e
com suas inquietações respondidas, Ledo ainda se sente deslocado. Bellow o diz
para aprender a ser livre, mas o que o que significa ser livre para uma
máquina, sem que se sinta disfuncional? Respostas para questões complexas assim
não são obtidas através de diálogos. Você precisa sentir.
É ai que entra as duas sequências mais bonitas de SnG até o
atual momento, destronando a primeira parte do episódio de estreia (me desculpem, eu amei aquela rave psicodélica).
A primeira é a belíssima cena com a chuva caindo e
interrompendo a conversa entre Ledo e Bellow. Ali ele pôde ver com os próprios olhos
o que é estar livre, se sentir vivo e que eventos tão banais, como uma chuva, são
comemorados com histeria, porque garantem a sua sobrevivência. É uma sequência
bonita e também mostra na prática o obvio. Soa bem melhor que diálogos
expositivos – apesar de que este método deles soa artesanal demais para pessoas
que vivem, talvez, há centenas de anos sob a água.
Tudo bem, o que eu entendi é que quiseram reforçar que as
pessoas se ajudam mutualmente, e em situações adversas, este laço tende a se
tornar mais forte. A sequência a seguir, está entre as duas mais bonitas da
série, responsável por trazer de uma forma climática à tona, o que se esteve
construindo durante todo o episódio: Laços. “Ainda assim não acho que eu seja
descartável. Eu... Eu tenho a minha irmã. A minha irmã precisa de mim”,
diz Bevel, e isso foi tão bacana. Muitas vezes têm se uma ideia de que é a
parte mais frágil de um relacionamento que precisa da outra, e nos esquecemos
de que muitas vezes é justamente o lado mais forte que precisa daquela pessoa,
para continuar sendo forte. Um motivo suficientemente válido para continuar
encarando adversidades com um sorriso no rosto.
Oh, eu estou tão piegas! Mas veja, a metáfora da flauta foi
incrível. Ledo guardava uma memória inconsciente de um símbolo que representa
seus laços com o passado e apego a valores humanos, que contradizem sua
ideologia. Uma flauta não é útil numa guerra. Foi impressionante o reflexo
condicionado de Ledo ao começar a chorar ao se lembrar de suas origens. Eu não
esperava por algo assim. Valeu o episódio pra mim. Agora Ledo já demonstra mais
interesse em ficar e aprender mais sobre estes humanos, o ponto de divergência
cada vez mais parece ser Chamber...
Em última análise, este foi um BOM episódio, que me deixou
com um ótimo gostinho na ponta da língua, já que o aspecto cultural e a
estrutura de mundo é o que eu acho de mais charmoso em SnG, e neste tivemos
umas camadas de ontologia jogadas indiretamente que fora muitíssimo agradável.
O desenvolvimento de caráter esteve ótimo, pela primeira vez Ledo se mostra
mais humano, suas dificuldades de comunicação e sua falta de sensibilidade para
abordar alguns tópicos, sem o menor constrangimento, estava impagável. Amy
continua adorável e a relação entre eles é divertidíssima, e mesmo sendo apenas
uma escada e assim provavelmente continuará sendo, a guria tem carisma. Chamber
continua ótimo, desde HAL 9000 que eu não vejo uma inteligência artificial tão carismática
assim. Mas o destaque foi Bevel, um personagem muito simpático, sua interação
com Ledo foi excelente.
Acho que essa viagem de descoberta pelo mundo de Gargantia
pode ser realmente muito boa, se o roteiro permanecer com uma boa escrita. A
abordagem mais de perto sobre os conflitos de Ledo, assim como as diferenças
culturais, teve seu ápice aqui. Eu li por aí que o Urobuchi só volta a escrever
nos episódios finais, mas tenho certeza que as insights deste episódio foram
coisas dele, e bem, ao menos as referências serão mais sutis (imaginem o Bevel declarando Aristóteles e
conceitos marxistas com um livro na mão hahaha). XDDD
Avaliação: ★ ★ ★ ★ ★
Avaliação: ★ ★ ★ ★ ★
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-Com tantas insights, eu fiquei realmente e curiosa e fui atrás pesquisar. Pesquisando fui parar no 4chan - hey, como fui parar neste lugar? - e estavam discutindo sobre essas referências. Em suma, eram anotações em IGHL alphabet, língua primitiva da Aliança Galáctica. Exemplo, na terceira imagem, o livro verde é uma referência à uma franquia interestelar sci-fi da BBC, essa última, na página direita é do projeto de embarcação estelar Daedalus, na esquerda um mapa estelar. Provavelmente o que restou do projeto daqueles que deixaram a terra para explorar o espaço e não se perdeu no fundo do mar.
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