sexta-feira, 31 de maio de 2013

Influências: A Renascença de The Music of Marie


Dessa vez falaremos sobre algumas influências presentes em Marie e obviamente um texto repleto de spoilas.

O estilo artístico que Usamaru Furuya imprime em The Music of Marie é irretocável, fugindo de padrões habituais dos mangás, além de muito inventivo com o uso de cores usando tinta guache, filtros e técnicas variadas que só alguém que domina a arte de pinturas em tela consegue reproduzir com engenhosidade em quadrinhos, o traçado que as vezes se tornam um pouco mais cartunesco, as paisagens europeias, é uma miscelânea artística incrível.

A estética de Marie é Steampunk (abrindo um parágrafo necessário, o Steampunk presente em Marie é tão somente referente à estética das máquinas. Nesse sentido, a obra de Furuya se aproxima também do Clocl Punk, subgênero do Steampunk, no conceito de se construir qualquer engenhosidade através de relógios; neste caso, são engrenagens), e entre muitas engrenagens, contrasta a ciência renascentista e a tecnologia avançada com designs pré-modernistas. Furuya certamente bebeu muito nas fontes de Moebius, um quadrinista visionário de fantasia cientifica pioneiro na abordagem artística detalhista que vai de designs industriais realistas e o uso inventivo para cenários fantásticos utilizando técnicas inovadoras. Uma referência da década de 70 e 80 que influenciou toda uma indústria e além de Hollywood, é justamente o cenário europeu quem mais bebeu desta fonte. Essa influência chegou mais tarde no Japão (inclusive, Miyazaki comenta sobre numa conversa direta com Moebius, em que ele confessa ter se inspirado em seu estilo para conduzir Nausicaa), mas é possível perceber seu toque em artistas como Taiyo Matsumoto, Masamune Shirow e Katsuhiro Otomo.



Acima, arte de Moebis e abaixo, de Furuya.


Em Marie, isto fica evidente na forma como Furuya utiliza os espaços negativos e positivos e seu design de mundo e personagens, os quadros com planos abertos com senso de profundidade. Essa presença não se dá apenas através da plasticidade das formas que Furuya dá à sua arte, mas também pelo cruzamento entre o orgânico e biológico, místico e cientifico, e principalmente por um forte senso espiritual holístico em que se crê profundamente na possibilidade não utópica (embora paradoxalmente o mundo de Marie seja utópico por definição) de um sonho comum e do entendimento global em que é possível reescrever o mundo.

É inevitável, Moebis inspirou muito a Europa que por sua vez é a grande influência de Furuya nesta obra.

Creio não precisar ir mais além, então podemos comentar da penetrante influência da cultura europeia em Marie. São muitas (tantas que me sinto amputada por não ser capaz de codificar Marie por completo, já que não conheço tanto da cultura europeia) especialmente na religião: as três entidades que aparecem diante à Kai; Ferro, Bronze e Ouro, aludindo às três idades da humanidade – Idade de Ouro, Idade do Bronze, Idade do Ferro. Inclusive, essas três entidades antropomorfizadas em Marie, são personagens presentes em algumas mitologias, especialmente a grega.


O termo de “Idade do Bronze” se refere às fases da existência humana na terra segundo a mitologia grega. Fui um período intenso no desenvolvimento do comércio, você pode perceber isso em The Music of Marie, impecavelmente representado por Furuya através do sistema de trocas entre as diversas aldeias. Um fato interessante é que durante a Idade do Bronze (Não sei se é necessário sublinhar isto, mas segundo a mitologia grega, houve cinco idades dos homens: a Idade do Ouro, a Idade da Prata, a Idade do Bronze, a Idade dos Heróis, e a Idade do Ferro), ocorreu o Dilúvio de Deucalião e... Conseguiu ligar os pontos? Quando Kai questiona às três entidades míticas se não estaria sendo manipulado, elas o mostram o futuro; para isso, ele mergulha liricamente em um local onde a humanidade se encontra submergida. Como resultado hipotético da escolha de Kai, esse futuro se torna realidade e a agua é tragada, dando lugar a uma acinzentada metrópole.

O Dilúvio de Deucalião é o equivalente grego ao diluvio de algumas culturas antigas, como a judaica e a cristã – você pode dizer que é como o dilúvio de Noé. E pra resumir a história toda, podemos dizer que os motivos são os mesmos: um castigo dos deuses para os mortais. É a humanidade chegando a um nível tão insuportável, que a única saída encontrada pelos deuses é resetando a história. Isso é citado no mangá, inclusive, seja de forma subtendida através das conversas entre Kai e Pai Gule sobre o colapso com o qual sofrera aquele mundo ou através desta imagem logo abaixo.

A humanidade conheceu várias épocas desde a sua criação; a Idade do Ouro foi a primeira, onde todos eram felizes e apesar do nome, ninguém pensava em ouro. Eram tempos de paz onde os alimentos brotavam da terra e a inocência imperava. Após essa idade feliz surgiu a Idade da Prata, com a eterna primavera dando lugar às quatro estações. Assim, a terra precisou ser cultivada para dar frutos. A decadência da humanidade se afunilou na Idade do Cobre, na qual começaram as disputas entre os homens, até que chegou na Idade do Ferro, quando o crime enfim fez sua estreia entre os mortais. A paz desapareceu por completo da humanidade e a terra ficou entregue à cobiça dos homens. Júpiter, deus dos deuses, que a tudo observava desgostoso, resolveu por fim a este caos, ordenou a seu irmão Netuno que inundasse a terra. Vendo a humanidade sendo varrida tragicamente, resolveu poupar da destruição um homem e uma mulher, que considerava os únicos ainda justos sobre a terra. Estes eram Deucalião e Pirra. Daí surgiu a Idade do Bronze.

Um fato interessante é quando os dois peregrinam pelas ruinas da humanidade e encontram um teatro, então Deucalião vê um dos cadáveres dos atores com uma mascara ainda presa ao seu rosto. Depois de tirar o sorridente adereço, por detrás da máscara só havia agora uma caveira pálida, que sorria compulsoriamente o sorriso da morte.


Sabe o que isso tudo quer dizer? Que Kai de fato não estava sendo manipulado, tendo em vista que as três entidades mostram a ele um hipotético futuro com base no conhecimento que possuem acerca da humanidade. Isso torna a obra de Furuya ainda mais rica; ele não está pura e simplesmente descrevendo algo que acredita, há todo um contexto histórico por trás de um trabalho primoroso. É uma visão holística naturista que despreza as corriqueiras dicotomias elaboradas pela sociedade ocidental, onde o homem vive numa harmonia total com a natureza. De certo os deuses acreditam que a materialidade contamina a espiritualidade do homem.

Por fim, The Music of Marie faz uma belíssima reverência ao período renascentista, um momento da história europeia do século XIII. É um período importante por marcar inúmeras transformações e assinalar o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna. Furuya traça esse retrato contrastando tecnologia [a mecânica, as tentativas de avanços tecnológicos, as pesquisas avançadas] e primitivismo [a religião, a fé em figuras mitológicas, o artesanato, arte barroca]. Essa transformação histórica é sentida através da cultura, sociedade, economia, política e religião, rompendo com as estrutura medievais – evidentemente, a deusa Marie é quem impede esse avanço, mas ele é eminente e fica obvio em diversos pontos do mangá em como tudo isso é travado apenas pela, alegoricamente falando, existência de sua música.

Um dos pontos mais relevantes é o modo como Furuya entrelaça todos estes aspectos históricos em Marie. Exemplo: referente à tecnologia podemos citar o protótipo de uma maquina voadora do pai de Pipi que é muito similar a um modelo desenhado por Leonardo da Vinci, já com relação ao impactante movimento artístico deste período poderíamos citar a arte barroca; é claro, é só bater os olhos e perceber, mas quando falamos de arte, ela não se refere apenas à estrutura e arquitetura, mas também a música. Este é talvez o elemento mais difundido na história de Furuya. Não podemos ouvi-la, mas é fácil perceber que é harmônica e ornamentada. Desse modo, podemos dizer que A Musica de Marie representa mais do que a fé na obra de Furuya, também evidencia um período que novamente entra em choque na história pela presença de Marie. O artista na idade Média era considerado um instrumento da manifestação divina, não tendo méritos próprios. Na Renascença o artista começa a ser valorizado como pessoa, como um criador, como gênio. Um princípio hedonista, característica deste período. No entanto, o que vemos é uma exaltação à Marie como fonte de tudo o que há de prospero em Pirit. Historicamente é o momento em que o homem passa a se distanciar mais da religião e se preocupar mais com o seu próprio umbigo. Aí lembramos o que acontece quando a música de Marie para e vemos a população de Pirit se voltar para valores hedonistas, criando se aí diversos conflitos de interesse.

Sem dúvidas, Marie é o triunfo da imaginação de Furuya. 


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