segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Chrno Crusade: Mary Magdalene (2003) - Corrente de Reviews


Se para alcançar um grande objetivo na vida você precisasse fazer um pacto em troca de sua vida com um demônio, ainda assim você o faria?


Chrno Crusade como um desastre em estrutura de enredo. É uma série que as pessoas apontam com nostalgia de um tempo que lhes trouxe muitas lembranças boas, e animes se tornam importante marcos de lembranças de momentos marcantes do passado. Chrno Crusade faz parte daqueles time que formaram o primeiro passo de muitos com relação a animes. No ocidente, o anime ficou famoso num importante momento de popularização da internet e dos animes, ao ponto do mangá homônimo de Daisuke Moriyama ter sido trago no embalo aqui para o Brasil, pela Panini.
Claro que esse carinho latente por Chrno Crusade não é por acaso, a série animada consegue estabelecer uma forte empatia frente a seu público criando e desenvolvendo os laços de amizade entre os personagens na maioria dos episódios. Além disso, uma grande força da série está no modo como mescla comédia com momentos sentimentais de tristeza embalados por belas trilhas sonoras como Chrno no Kanashimi. Os personagens que formam o núcleo principal da série tem motivações muito fortes, passados traumáticos e fazem de sua existência uma forma de repararem traumas que ainda não foram superados. E eles se encontram, se ajudam mutuamente em diversas missões, discutem e se separam, seus caminhos voltam a se encontrar, e no fim, é difícil não vê-los realmente como uma família desajustada que cresceram juntos como pessoas e trilham o mesmo caminho por um mesmo objetivo. Tudo isso reverbera nos últimos episódios em que todas essas emoções se afloram ao máximo, culminando num desfecho de impacto emocional que conseguiu me arrancar lágrimas. Eu sou uma boba pra essas coisas. Pra digerir melhor, precisei baixar a trilha sonora e ficar escutando Chrno no Kanashimi, Saigo no Hibi, Azumaria no Uta, entre outras, pra preencher o vazio que ficou. Fiquei um bom tempo refletindo sobre o que acabara de ver.  Isso também tem razão de ser, que explicarei mais adiante, o mais importante é que se torna dificílimo ignorar todas as deficiências técnicas dessa adaptação do estúdio Gonzo, ainda que tenha eficácia em criar certa empatia.
A história tem como pano de fundo os efervescentes anos 20, década da alta moda, jazz, noitadas, glamour, discrepâncias entre classes e da grande depressão, mas isso só serve como cenário praticamente intocado para a história de Chrno Crusade, que poderia tranquilamente se passar em qualquer década, mas se passa no ano de 1928 D.C. Neste mundo, existem demônios que se aproveitam da fraqueza das pessoas e sua ganancia para praticarem suas maldades, e encontram num cenário conturbado de desequilíbrio entre classes, um prato cheio. Para combatê-los, fora designado pela igreja católica a organização Magdalan, um convento de freiras que combatem esses demônios pelas ruas escuras de Nova Iorque com balas de pratas e hábitos sexys que deixam muito bem expostas suas curvas estonteantes, calcinhas e stockings. O padre Remington (pelo veterano Sho Hayami) é o líder da Magdalan, ao lado da irmã Kate Valentine (pela veterana Yoshiko Sakakibara), ambos acreditam que a terceira profecia de Fátima, que na época era um segredo mantido pelo Vaticano, falasse sobre uma terceira Guerra Mundial contra os demônios, e então partem em busca dos 7 apóstolos. Estes 7 apóstolos são seres humanos capazes de controlar a linha astral, que se trata de um enorme rio de vida que circula pelos céus. Durante a busca, Remington encontra o frágil Joshua Christopher (Junko Minagawa), um garoto que vive num orfanato com sua irmã mais nova Rosette Christopher (Tomoko Kawakami, falecida este ano) e que se revela sendo o apostolo da Esperança. Ele tem uma doença que o debilita e paradoxalmente um dom capaz de curar pessoas enfermas, mas não a ele mesmo.

Pouco antes de ser levado para Magdalan, Joshua e Rosette encontram o túmulo de Maria Madalena (também dublada pela Tomoko Kawakami) e ao lado dele, um demônio com aparência infantil chamado Chrno (Akira Ishida). Ambos se tornam amigos. Joshua é sequestrado por Aion (dublado pelo Kazuhiko Inoue), um demônio tem como objetivo destituir Deus e fazer com que pessoas e demônios possam fazer o que bem entendam na face da terra sem a restrição divina, para isso ele também vai atrás dos 7 apóstolos. Rosette então faz um pacto com Chrno representado por um relógio que fica em seu pescoço, em que cada vez que ele utilizar seus poderes, a vida de Rosette irá diminuindo gradativamente até chegar ao seu final. Então eles se unem a Magdalan com o objetivo de buscar o paradeiro de seu irmão, e passados muitos anos, Rosette agora tem 17 anos, e durante as buscas conhecem a cantora mirim de 12 anos e apostola da Caridade Azmaria Hendrich (Saeko Chiba), além de Satella Harvenheit (Michiko Neya), também uma caçadora de demônios que está sempre se desentendo com Rosette por causa da natureza sempre otimista da garota. Ambos têm suas caminhos cruzados e vão descobrindo aos poucos que tem mais em comum do que parece a principio ao mesmo tempo em que a história irá se revelando pouco a pouco para nós.
A fantasia de Chrno Crusade tem algo que me lembra Shakugan no Shana (também do mesmo período e igualmente objeto de nostalgia), como o vilão sisudo com pose de galã que não se importa com o método que utiliza durante o anime para alcançar um ideal teoricamente nobre e uma garota esquentadinha. Há também uma equipe estranha de vilões, incluindo uma cientista demônio que não faz o menor sentido dentro da história. Bem, se não levarmos em conta os embates duvidosos utilizando magia que fazem bocejar, Chrno Crusade tem a seu favor o fato de levar às ultimas consequências os seus eventos apocalípticos, com perdas reais, mortes sem voltas e um rastro de destruição com danos irreparáveis, ao contrário de [sic] Shakugan no Shana. Chrno Crusade se distingue do mangá em sua abordagem religiosa mais contundente, com isso influenciando significativamente os rumos da série. Acho louvável diretores que colocam sua própria interpretação nas séries em que trabalham, distanciando se preciso do original, porém Yuu Kou (Blood+, Zero no Tsukaima) acaba desestabilizando a mitologia da série e dando pouca solidez ao novo conceito de mundo criado.
O anime traz consigo diversas referências religiosas. Aion passa parte dos episódios referindo-se àquela cara lá de cima com blasfémia e desdém, além da própria série aludir a diversas passagens e figuras religiosas. As atitudes hostis de Aion e sua ideologia se assemelham a de um sonho ingênuo que parece ter saído da mente de uma criança de menos de 8 anos. É difícil definir se Aion realmente acredita neste estado de harmonia num mundo sem Deus ou se ele está agindo de má fé – e este pode até ser um um ponto interessante se o vermos como um reflexo da humanidade e sua necessidade de se agarrar a determinados ideais, mas a série não faz esforço em validar essa raciocínio, soa mais como uma tentativa de um espectador em dar substância à estado plano de um personagem tão vazio. A construção desse paradigma de Aion é fraca e sua linha de raciocínio confusa.

Aliás, devo frisar que o anime de Chrno Crusade não é claro o suficiente sobre várias questões que definem o seu mundo. É perceptível uma tentativa de criar uma falsa complexidade [e assim fazer com que se reflita sobre algo que] que não existe pelo simples fato de não haver camadas palpáveis a se explorar sem se recorrer à mídia original. É citado durante alguns momentos da série sobre a cabeça de Pandemonion que Aion aparece segurando como um troféu e que será um elemento chave para destituir Deus de seu trono. Também é citado algumas vezes sobre a Linha Astral, de igual importância para o desenvolvimento de seu plano. Mas este argumento nunca é expandido devidamente, fora uma alusão aqui e acolá, você não fará muita ideia do que é isto. Obviamente Linha Astral e a religiosidade cristã são dois temas que se sobrepõe e nunca se encontram por serem dois conceitos distintos empregado distintamente entre o anime e mangá. Logo, não há o que se analisar ou interpretar, mas é sempre uma atitude sabia colocar uma complexidade inexistente para os telespectadores pensarem realmente há algo ali (*muitos suspiros*).
Ainda que a relação dos personagens se desenvolva naturalmente com tantos episódios cotidianos, não há de fato uma tentativa de aprofundar o que eles são, suas motivações, suas relações, nada além de corriqueiras correrias sem inspirações e discussões aborrecidas – nada que leve a algum lugar de fato ou que seja ao menos visualmente agradável de se assistir tendo em vista que a qualidade de animação é media e vai decaindo nos últimos episódios [de longe, os mais interessantes]. A série perde tempo demais com aleatoriedades e se esquece de dar urgência ao seu enredo e expandir seu mundo e personagens. Há poucos episódios do fim eu me perguntava se ainda iria acontecer algo de significativo. Aion que aparentemente deveria ser temível não passa de um canastrão que não consegue ficar um episódio longe das partes intimas de alguma personagem. Até mesmo Chrno é um personagem completamente perdido dentro da história que não faz outra coisa senão ser indeciso, sem qualquer camada de complexidade. Mas talvez, a despeito disso tudo, a ausência mais notável seja a dos tão comentados apóstolos, que de 7, só aparecem 3. Ou talvez eu tenha passado tempo demais bocejando e não percebi a presença deles.

Para não deixar a lista grande demais, (ela poderia se tornar ainda maior se eu explanasse melhor e não só citasse exemplos, mas eu tenho que fechar o texto), é imprescindível citar a falta de lógica da direção em algumas cenas de lutas, como a Rosette destilando litros de sangue a metros de distância através de seus pulsos, do porque Chrno tocar Rosette e ser queimado por ela estar num estado de extrema pureza, mas o mesmo não ocorrer com Aion. Vamos um pouco mais fundo: na série, Joshua pode transformar as pessoas em pedras por causa do chifre de Chrno fincado por Aion em sua cabeça, a pergunta que fica é se logo depois Chrno lhe arrancou esses chifres, porque Joshua ainda conseguiu transformar ele em pedra? Encerro por aqui alguns dos motivos que fazem de Chrno Crusade um anime caótico e desastroso, mas que estranhamente consegue triunfar emocionalmente.
Se escreve “Chrno” ao invés de Chrono, como uma referência ao deus grego de mesmo nome, que era a personificação do tempo na mitologia grega, seus chifres tem o poder de parar o tempo. Também era habitualmente chamado de Eón ou Aión. Na série, Aion tem através de seus chifres o poder de acelerar o tempo. A questão do tempo é percebida de um jeito significativo pela quantidade de eras em que Aion está manipulando seres humanos tentando levar seu plano adiante, e com relação ao contrato de Chrno com Rosette em que cada vez que ele tomasse a sua forma antiga, diminuiria significativamente o tempo de sua vida. Essa característica do mal sempre estar rodeando e provocando tentação [na figura de Aion] e a vida dos personagens é o único momento em que o enredo de Chrno Crusade consegue tocar a pungência do que é viver num mundo como este. Isso traz um apelo emocional ao final que não pode ser ignorado, principalmente numa figura empática como Rosette, sempre sorridente e positiva, mas carregando um fardo tão grande que mal consegue carregar. Ela quer viver, ela mais que ninguém quer continuar viva e respirando a vida, lutando pelo que acredita ao lado dos que ama, mas o tempo é cruel e a vida é um frágil filete de água que escapole entre os dedos por mais que queiramos permanecer com os olhos abertos.

Algo interessante são os embates verbais em que o grande trunfo de Aion diz respeito à manipulação e tentação oferecendo um falso paradigma sem o menor temor de usar as pessoas como meras marionetes. No fim das contas, é triste ver que o mal que ele provoca na vida daquelas personagens não é reparado, dá uma angustia ver que no fim ninguém pôde ser feliz, embora encontremos paz na redenção desses mesmos personagens. A vida é feita de momentos e objetivos que nem sempre sairão de acordo com o que planejamos, mas o que importa no fim são as pessoas que nos fizeram companhia em nossa jornada e as lembranças que levaremos conosco pela poeira interestelar que romanticamente chamamos de cosmos onde finalmente poderemos ser plenamente felizes.  Chrno Crusade contrasta com o panorama abordado por mim em Zetsuen no Tempest, aqui as pessoas não conseguem romper com o destino acordado pelos planos espirituais superiores a compreensão humana.

Particularmente, um grande momento que me deu um grande baque em Chrno Crusade, é quando a irmã Kate pergunta com a voz embargada para Remington se [Spoilers, selecione para ler >>] a alma de Rosette encontrará paz nos reinos do céu por ter feito um pacto com Chrno, um demônio, e ele responde que sim. Foi emocionante. Ainda que estruturalmente problemático Chrno Crusade gera empatia por falar daquilo que nos é tão caro como seres humanos: nossas vidas, as pessoas que nos são queridas. É dessa necessidade de um final feliz, de tocarmos o intangível, alcançarmos uma real felicidade e paz só possível no campo espiritual, que a humanidade se devota tanto a cristandade e acredita na vida após a morte. É triste pensar que todos os nossos esforços aqui na terra foram ineficazes, é este vazio que fica ao visualizarmos [spoilers>] Aion vivo no final, partindo para fazer o mal em mais uma era. Mas não é essa a natureza do que chamamos de mal? Esse mal é a corrupção e a ganancia no espirito de cada pessoa através de séculos e séculos. Dessa forma, a figura de Aion no final não passa de uma alegoria dessa característica tão humana que se perpetua através da história.


Nota: 04/10
Diretor: Yuu Kou
Roteiro: Atsuhiro Tomioka, Natsuko Takahashi
Estúdio: GONZO
Episódios: 24
Tipo: TV

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Yay, essa é a segunda participação do ELBR na Corrente de Reviews, idealizada pelo blog Anikenkai. Ano passado comentamos Hataraki Man, e este ano por indicação da simpática Nany-chan do blog Alchemist Nany! foi a vez de Chrno Crusade. Apesar de, para mim, maçante a maior parte do tempo, o final me emocionou e agradeço de coração pela aventura proporcionada. Temo também ter designado uma tarefa árdua para o blog Nerd-Ogro! ao lhe indicar Boogiepop Phantom, um anime também problemático em sua estrutura narrativa, mas que traz consigo uma abordagem interessante, e em um blog tão voltado a mangás e shounens, só consegui pensar em um anime tão peculiar como este para lhe desafiar. Pra todos os posts da Corrente de Reviews, acesse a central. Gira, gira, pomba gira~!

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