segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Influências: Mitos da Criação e o Culto às Mulheres (Milk Closet)


Terá o universo surgido do ventre de uma mulher?



A espinha dorsal deste texto se baseia na cosmogonia de Milk Closet, um assunto que não encontrei espaço para abordar no post que fiz sobre a obra (Milk Closet - A Cosmogonia de Tomizawa Hitoshi), mas dessa vez pretendo ser breve... acho. Além do mais é um assunto de caráter bem aberto e interessante, ou pelo menos, se trata de algo que a mim sempre despertou fascínio. Compreender o universo permite com que o mundo em que vivemos faça sentido, mesmo antes da cosmologia moderna empreender importantes avanços, a cosmogonia já auxiliava na cabeça de cada pessoa a tornar lógico a sua existência neste mundo.

Cosmogonia é imaginar, explicar, criar, dando origem a diversas mitologias e crenças populares; e diferente da cosmologia que estuda o universo com base nas ciências exatas, esta é determinada pelas religiões de cada povo ou suas culturas, atribuindo um sentido religioso a todos os fenômenos. Do ponto de vista artístico, dá pra traçar um paralelo entre cosmogonia e cosmologia, sendo o primeiro a ficção fantástica e o segundo a ficção cientifica. Mas e ai, Neon Genesis Evangelion é fantasia ou ficção cientifica? Suzumiya Haruhi é ficção cientifica ou fantasia? Qual a melhor deusa, Madoka ou Haruhi? Star Wars é fantasia ou ficção cientifica? Qual dos dois é melhor, Star Trek ou Star Wars? Star Trek é cópia de Star Wars?– OPS! Por mais interessante que possa ser discutir essas polêmicas, comecei este artigo pra comentar rapidamente sobre o conceito de Milk Closet.

Durante sua leitura é possível perceber que o autor Tomizawa Hitoshi, que já produziu diversas obras alienígenas, possui bastante conhecimento sobre mitologias. Em Milk Closet ele agrega diversas mitologias, mas a mais forte diz respeito aos mitos da criação do universo. Uma das teorias mais antigas sugere que a existência de Deus existe além do mundo físico e que seria ele o responsável pela criação do universo. É um conceito básico baseado na ideia de algo além da nossa compreensão ter sido o responsável pelo inicio de tudo, por ser impensável para a mente adulta, de que estamos sozinhos por nós mesmos. Agora, a ideia de “nascimento” sempre desempenhou um papel muito importante nos mitos da criação.

Nos tempos antigos, o universo, muitas vezes apareceu na forma de um ovo ou uma representação de uma mãe dando à luz a seus filhos. Isto foi baseado na visão de que a vida surgiu a partir da “Mãe Terra”, originado do ventre de uma mãe. A partir de então as pessoas começaram a mistificar a existência de uma deusa mãe associada à terra como gerada da vida, da natureza e fertilidade; com a unicidade de um “Pai” no céu. Todo o conceito de Milk Closet gira em torno dessa ideia, como podemos observar no final de Milk Closet na figura de um pai guardião e uma mãe virgem progenitora de um novo universo.  

Sim, remonta à ideia do universo como um útero. “Um universo dentro de um universo dentro de um universo”, parece meio insano, mas faz muito sentido dentro da proposta. Quando os personagens adentram no corpo da garota abaixo através de um orifício umbilical, o universo que há dentro dela está vazio, mas no momento em que ela ingere o fruto da fertilidade, simbolizado por toda a vida restante que há ao seu redor, ela dá origem dentro de seu ventre a um novo universo.

Qual mitologia o autor está retratando aqui? Não há exatamente uma em especifico, mas sim o conceito dos mitos da criação.




O clássico The Great Cosmic Mother, Rediscovering the Religion of the Earth de Monica Sjöö e Barbara Mor lança um olhar elucidativo sobre as origens do culto às divindades femininas. Durante a pré-história, as deusas eram adoradas pela associação com a fertilidade e fecundidade, as figuras das sacerdotisas eram dominantes. Tudo isso fazia parte de um mundo matriarcal anterior às religiões patriarcais. Segundo a arqueologia, a celebração dos processos femininos marcaram e dominaram os primeiros trinta mil anos do homo sapiens; menstruação, gravidez, dar a luz tinham uma intrínseca relação com os ciclos da fertilidade da terra/natureza. Os primeiros ritos de funerais colocavam o cadáver em posição fetal tingindo-os com ocre vermelho, que lembrava sangue, para que a pessoa fosse devolvida carinhosamente ao ventre da mãe.

Para Darwin, o oceano, uma figura feminina provida do útero da deusa Gaia, foi o ponto fundamental de onde emergiu a vida. No entanto, não deixa de ser curioso que as religiões modernas taxem o paganismo de primitivo enquanto segregam a figura da mulher. Após o advento da religião patriarcal, levou um tempo até que a ciência reconhecesse, biologicamente, novamente a mulher como o ser responsável por transmitir a linhagem de qualquer ser humano através do DNA mitocondrial, presente tanto no homem macho, como na mulher fêmea (redundância), podendo ser rastreado até a origem das primeiras mulheres africanas. Entender a sua importância para o mundo, se aceitar e se orgulhar pelo fato de ser uma mulher é de vital importância para que não se deixe oprimir pelo patriarcado, mesmo que através de conceitos religiosos. Se por um lado há uma religião que nos faz acreditar que a culpa do mundo ser como é, é nossa por causa da traição de Eva, e que sofremos a punição da dor todo o mês por conta disso, saiba que há uma outra visão muito mais bonita, que é a de progenitora da vida. A terra é mais palpável e tangível que o céu. Sobre ela caminhamos todos os dias, plantamos, colhemos, é a única divindade que se permite tocar e sentir. Por um ponto de vista abstrato, a terra é Gaia respirando a plenos pulmões.

Por fim, depois deste desvio de pensamento, voltando à Milk Closet, é possível perceber durante a leitura a presença de baleias. Baleias são consideradas as deusas do mar. Enquanto divindades, elas simbolizam o renascimento em associação com o fato de serem consideradas o suporte do mundo. Há muitos mitos, assim como diversas religiões, que veem no rito de passagem pelo ventre da baleia como uma espécie de renovação espiritual (por isso que teve aquela campanha espiritual da Igreja Universal com uma baleia no meio da igreja, e os fieis pagando para adentrarem dentro dela). No episódio bíblico em que Jonas é engolido por uma baleia e permanece lá durante três dias e três noites, enquanto no mesmo período Jesus morreu e ressuscitou, acredita-se que ele sofrera uma morte iniciática com sua saída do ventre da baleia representando simbolicamente o seu renascimento.  Mas o que nos interessa aqui é o mito babilônico em que a baleia é vista como uma deusa marinha, mãe mítica da rainha babilônica Semiramis (progenitora de Babilônia e seus Jardins Suspensos), que possui uma história deveras complexa (e muito foda) para ser debatida aqui, mas sua influência é tão difundida culturalmente na cultura pop e nas diversas mitologias, que eu preciso dar alguns exemplos de sua importância como personagem mitologica.

Podemos começar pelo quadro de Eugéne Delacroix, onde simbolizavam protesto (intitulado “A Liberdade Guiando o Povo”, hoje no museu do Louvre, Paris). Sua influência ideológica surgiu no movimento revolucionário francês e da “Declaração dos direitos do Homem”. Semiramis está presente em diversas culturas, embora com outros nomes, e monumentos fazendo menção a ela, da Pax romana com os seios à mostra simbolizando a fertilidade ao quadro de Eugéne Delacroix com o mesmo seio esquerdo à mostra, dessa vez simbolizando o protesto. Você ainda pode nota-la na figura da Estátua da Liberdade e na mulher da imagem do Columbia Entertainment. De Themis, a deusa símbolo da justiça (que possui uma espada, a balança e a venda em seus olhos – e que eu sempre confundo com Athenas, que dizem ter absorvido muito de Semíramis) à Diana de Éfeso, deusa dos campos na qual foi inspirada a Mulher Maravilha e o nome da princesa Diana. Semíramis ainda é Vênus, Ceres, Gaia. Em Roma ela é a Virgem Maria e seu filho Jesus – e aqui podemos entender o porquê dela ser tão atacada pelo catolicismo e cristianismo, uma vez que ela se envolve com seu próprio filho e dizem ter usado o ventre para dar à luz a satanás. Já ouviu dizer que as mulheres audaciosas são quem usam as calças na famílias? Há quem diga que mulheres usando calças foi algo que começou há mais de 2.000 anos com Semíramis, líder nada que encabeçava exércitos – e essa é só mais uma das diversas lendas mitológicas que a rodeiam. Parece complicado porque é mesmo complicado e não vou adentrar nisto, mas saiba que seu valor histórico é tão intriseco que é ela a mulher que estampa a nossa moeda, o Real.






E para Tomizawa Hitoshi, Semíramis é a garota Liesl, de Milk Closet. Ele não se dá ao trabalho de explanar um conceito de fundo para ela, mas o que ele mostra, tendo conhecimento da história de Semíramis, é possível chegar a essa conclusão. Basicamente, Liesl tem como marido um pequeno príncipe que não dá valor a vida e planeja reinar sobre todo o universo, enquanto ela pretende secretamente ir contra suas ambições, criando um novo universo tendo em vista que o atual já se encontrava fadado à destruição. Sua mãe é uma baleia e se encontra presa entre correntes, uma simbologia abstrata do universo sendo impedido de renascer. A própria Liesl se vê como uma mãe progenitora.

Enfim, além dos mitos da criação greco-romanas e aborígenes de onde a cultura pop mais bebe, os mitos da criação japoneses é outra fonte muito usada pelos japoneses para dialogar com seu povo, exemplos como Suzumiya Haruhi e Sasami-san@ganbaranai é o que não falta, mas isso já é outra história. 


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