quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Journey to the End of the World (2003) - Jornada Para o Fim do Mundo

Em algum momento da vida já pensou em fugir dos problemas que o cerca e sair em uma jornada pelo mundo?



-Never - OP theme de Kaiba, por Seira Kagami


“Are you shoveling to survive, or surviving to shovel?” (traduzido livremente fica “Você está cavando para sobreviver, ou sobrevivendo para cavar?”). Trata-se de uma frase que ficou marcada em meu subconsciente após terminar de assistir o clássico – com letras maiúsculas – ‘The Woman in the Dunes’ (originalmente ‘Suna na Onna’. Em brasileiro ‘A Mulher das Dunas’ ou como ficou conhecido oficialmente ‘A Mulher da Areia’) de 1964, do celebre Hiroshi Teshigahara, baseado num dos principais romances japoneses do século XX, de Kobo Abe.

Na história, um professor viaja para uma remota vila à beira-mar para coletar insetos para a sua pesquisa. Ele acaba perdendo o último ônibus, então um dos moradores arranja um local para que ele pudesse passar a noite, junto a uma mulher solteira num barraco no fundo de um vasto poço de areia, em que para descer, seria necessário usar uma escada de cordas, assim como para subir. A mulher passa a noite recolhendo areia das dunas para que seu barraco não fosse soterrado por elas. Ela coloca a areia em baldes, que outros camponeses sobem usando cordas. A aldeia em seguida vende a areia para construtoras. Em atônita perplexidade, o homem pergunta à mulher se ela esta cavando para sobreviver, ou sobrevivendo para cavar. Na manhã seguinte ele descobre que a escada fora retirada e que está preso naquele local. Se quiser se alimentar, beber água, enfim... sobreviver, teria que cavar, igual a mulher. O vemos que no decorrer do filme é a flexibilidade das dunas e a inflexibilidade do homem em se manter acomodado em um contraste inquisidor. Ele tenta escapar, mas a areia o engole. O desfecho não é nada menos que fantástico e o desenrolar surpreendente. O homem passará por ciclos de medo, desejo sexual, orgulho, até sucumbir. A metáfora perfeita de uma situação que gera revolta ou repulsa em um primeiro momento, mas que culmina em conformismo em seguida.


-"Eu não gosto das pessoas"
-"Esse é o seu crime!" -- respondeu o juiz. 


Gastei um paragrafo para falar de ‘The Woman in the Dunes’ porque depois de ler ‘The Journey to the End of the World’ (Originalmente ‘Kono Sekai no Owari e no Tabi’ e em português ‘A Jornada Para o Fim do Mundo’), descobri que Nishioka Kyoudai (que é uma dupla de irmãos que utilizam esse nome artístico) se inspiraram no romance clássico de Kobo Abe. Como fiquei estarrecida com o mangá, decidi que precisava conhecer ao menos este filme. Acabei premiada com uma das melhores experiências de cinema da minha vida. No fim, perseguir inspirações de obras que você conheceu primeiro e gostou, acaba sendo algo com saldo bem positivo. E a linguagem do mangá é mesma do filme, também é kafkiana, tem Dostoievski, e vai saber o que mais, só que num tom de fábula folclórica.

‘Journey to the End of the World’ não se inspira em apenas em ‘The Woman in the Dunes’, nota-se também muito da síntese do trabalho de Lewis Carroll, ‘Alice no País das Maravilhas’, e de Franz Kafka; este não se resumindo em apenas um trabalho, mas no extrato concentrado de suas obras que tratam do homem com seu ambiente de trabalho e convívio social; as ansiedades e a alienação do homem do século XX.

Não é necessário sair de casa. Permaneça em sua mesa e ouça. Não apenas ouça, mas espere. Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio. Então o mundo se apresentará desmascarado. Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés. 
citação kafkiana


Nishioka Kyoudai com essas obras referenciais combinou a essência do mito, do suspense e do romance existencial em uma parábola sobre prisão física e espiritual. Sinopse básica: um homem sai em uma jornada para fugir de sua vida repetitiva e chata e sem graça. Ele encontra coisas incríveis e inacreditáveis pelo caminho, assim como também coisas terríveis.

Imagina você, acorda de manhã bem mais consciente que o normal, numa perfeita sincronia entre corpo e espirito. Você se arruma para ir ao trabalho, se senta para amarrar os cadarços e então se dá conta de que não sabe mais amarrá-los. “Minhas emoções e meus cadarços estão emaranhados”, ele pensa. Ele abre a porta, olha pela porta, atravessa a porta e vê um mundo grandioso e segue um caminho sem direção.

A vida diária é um estado de sonambulismo, acordando ao mesmo tempo todas as manhãs e fazendo mecanicamente todas as ações no trajeto para o trabalho. Às vezes não sente uma vontade de largar tudo e seguir uma jornada pelo mundo? Não sei você, mas nosso protagonista sai andando a esmo sem qualquer direção ou destino. Podemos notar que ele vive sozinho. Seria a pressão do ostracismo social? O que levanta uma questão interessante, porque na literatura kafkiana, o autor debate o ostracismo no seio familiar. Uma coisa é certa, o protagonista sofre com a pressão do trabalho e impressão de não passar de uma máquina, um relógio humano. Quando a história começa, sua alma está tão dormente que ele nem mais se sente vivo, mais parece uma máquina apenas repetindo as mesmas ações todos os dias.

Partindo rumo ao desconhecido...

Assim como em Alice, um mundo fantástico se abre diante dele, onde ele pode ser pirata, ir parar numa ilha isolada, se apaixonar por uma mulher-borboleta, ficar diante de divindades. ‘Journey to the End of the World’ é um trabalho antirrealista e a arte experimental, com suas curvas tortas, estrutura corporal alongada, arte déco, sombreamento, texturas, e o surrealismo fantástico do cenário, tudo isso tem um papel primordial na forma como absorvemos a essência dessa história. Toda a arte em si, não sei se estou me deixando enganar, mas me parece trazer semelhanças do expressionismo alemão. Sem dúvidas é algo que contribuiu para esta obra como um campo arenoso.

É como se tudo não passasse de uma imersão em um sonho daqueles mais fantásticos e nonsense que reproduzem nossos estímulos mais secretos, em que saltamos de uma cena à outra em questões de segundos.


Acontece que, ‘Journey to the End of the World’, é uma viagem que serve de ensejo para várias reflexões sobre a vida e a existência humana, uma metáfora representativa de uma alegoria existencial, isso não pode ser ignorado ou será apenas um maga meio louco e estranhão. Um conto bizarro de ficção, que espelha a alienação da sociedade e a inabilidade de fugirmos à nossa própria prisão individual, bem como não sermos capazes de ser proativos e nos acomodarmos a uma rotina estressante e que destrói mente e corpo. A Jornada representa a libertação do trabalho, das amarras da sociedade. Ao menos, uma tentativa. O interessante, é que por mais que se debata, a única forma de libertação de fato é a mesma destinada à Gregor Samsa, de ‘A Metamorfose’, de Kafka.

Quando o protagonista sai pela jornada, ele encontra diversas atividades que chamam a sua atenção. De um simples bote que ele usa para sair navegando sem direção, ele se transforma em um pirata capitão de um navio, que se torna obsoleto frente a outros, então ele sai atacando outros navios e roubando sua tecnologia e fazendo prisioneiros, O navio logo se torna um monstruoso complexo social que o aprisiona e o torna novamente frustrado e entediado. Em outra sequência quase lúdica, ele vai parar numa ilha mitológica, com indígenas canibais que devoram uma estranha forma de vida semelhante a um ser humano que se alimentam de cadáveres humanos.  O protagonista se nega a comê-los, para imenso desgosto do velho ancião da tribo, que lhe conta a história da criação do mundo e do porque deles comerem essa criatura. Ainda assim nosso protagonista se mantém inflexível, e ao demonstrar vontade de partir, é enjaulado ao lado de uma dessas criaturas do sexo feminino, com a condição de que só seria liberto quando a devorasse. Mas ele acaba por se apaixonar por ela.

Não vou adentrar muito para não estrar as surpresas que acontecem em espiral a partir disso, como se fosse um sonho em que um mundo se desmaterializa e você cai em outro, que também desmaterializa. Como em Alice em seu universo surrealista com provocantes sequências onde cabe ao leitor acreditar ou não. ‘Journey to the End of the World’ é uma obra existencial que explora o comportamento do ser humano quando sob pressão, a violência, a paranoia de ser traído, a sexualidade, saúde mental. O protagonista passa pelos ciclos de fuga, adaptação, rejeição até finalmente chegar a um acordo com este mundo peculiar. Porém, a mensagem que o velho ancião lá atrás queria lhe ensinar, é de que o homem não pode vencer a estrutura da máquina que ele mesmo construiu, e que em algum momento, por mais morto que esteja, será bifurcado por faíscas de vida que se debatam por dentro. Mas, é nessa tentativa de acordo com o mundo em que vive que ele cairá em uma agonia sufocante e melancólica depressão irá fazer com que o único lugar com que sinta paz, seja encolhido em posição fetal dentro do útero materno.

Mas apesar dessa camada desesperançosa e desoladora, ‘Journey to the End of the World’ tem uma linguagem poética, tanto visual quanto de roteiro, que ao invés de transmitir tudo isso em um processo visceral, usa a realidade fantástica parar tornar aquele mundo fabuloso aos nossos olhos. Isso resultou para mim em uma experiência instigante de querer saber qual o próximo mundo impressionante saltaria na próxima página. Juntamente com a arte estilizada que cria uma sensação de descoberta a cada página. Não só o protagonista, mas o leitor também é jogado em um mundo que provoca uma aguda consciência de si do absurdo da condição humana. É uma obra arenosa por ser um emaranhado de emoções subjetivas, sendo propenso ao silêncio, mas essa introspecção não é exaustiva psicologicamente como em Oyasumi Punpun, é como entrar em contato com um universo semiconsciente dentro de si. É mais um processo reflexivo e visualmente espantoso.


Nota: 9/10
Autor: Nishioka Kyoudai
Serialização: AX (Seirinkogeisha)
Demográfico: Seinen
Volumes: 1 (finalizado)

Temas Relacionados:
-[+18] Believers: Hikikomori, Aum Shinrikyo, e o Culto

Pra fechar:

Se eu pudesse escolher uma trilha sonora para esse mangá, seria os temas cantados por Sera Kagami para Kaiba. A de encerramento seria Carry Me Away, também encerramento de Kaiba. Acho que a voz melancolicamente melódica e a letra combinam demais. 





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