“Bom, ele é gentil, muito confiável, e atencioso” – Kaori
sobre Yuuki
Ando a assistir Isshuukan Friends e desde o episódio 4 que o
personagem Yuuki Hase (imagem) vem me
chamando a atenção na relação que mantém com sua amizade colorida, Kaori
Fujimiya (imagem). Na história, Kaori
é uma garota que sofre um distúrbio psicológico, só conseguindo reter memórias
de amigos e pessoas que gosta (fora a
sua mãe), por uma semana apenas. Até que Yuki se aproxima e mostra que ela
pode ser capaz de superar estes obstáculos. Algo similar ao filme Como se Fosse
a Primeira Vez (50 First Dates).
Aliás, Isshuukan Friends se assemelha à Como Se Fosse a
Primeira Vez não apenas na questão da perda de memória, mas também em como o
protagonista vivido por Adam Sandler se posta como um príncipe-herói descolado
do século XXI que devolve a personagem de Drew Barrymore à “vida”, tal qual
acontece em A Bela Adormecida [e suas colegas princesas]. Essa estrutura é
percebida na maioria esmagadora dos romances, sejam eles voltados para o
público masculino ou feminino. Haréns, visual novels, light novels, shoujos e
shounens românticos, livros, filmes, novelas, etc. e etc. Em Kimi ni Todoke,
Sawako é uma menina perdida que só consegue se encontrar quando descobre o amor
na figura do romântico e gentil Kazehaya. Ele a estende a mão quando todos
ignoravam e repudiavam sua presença, e só então a partir deste gesto, Sawako
entra num processo de aceitação por parte dos demais e de si mesma. Ela ainda
demonstra uma atitude complacente de submissão, fragilidade, docilidade; são
características que nunca vão desaparecer, enquanto Kazehaya é o seu Norte, o
farol num mar obscurecido pela escuridão da noite, ele o sol e ela o girassol.
Isshuukan Friends e Kimi ni Todoke são duas obras que eu gosto
bastante, especialmente a última citada. Ambas se assemelham estruturalmente e
ideologicamente, através do paradigma de um amor altamente idealizado,
abnegado, submisso, conservador e extremamente puro. Ambas também se assemelham
a grande parte da idealização romântica das personagens femininas do Romantismo
brasileiro, onde as mulheres retratadas reivindicam o amor e renunciam a si
mesmas, pois se confunde este sentimento como sendo a própria razão de existir
e à força destino ao admitir a possibilidade de morrer por este amor. Como é fácil
de perceber através de diversas mídias, gêneros e demográficos, não se trata de
um conceito ultrapassado e tão pouco característico apenas de uma cultura. A ideia
romântica de que não existe vida após o amor idealizado e a falsa impressão (como algo cognitivo) de que será algo
a perdurar indefinidamente ainda persiste – só que sem o olhar trágico do
século passado, afinal no nosso mundo contemporâneo tudo é reciclável,
substituível e instantâneo. Sinais de uma sociedade conectada, mas carente e
com medo da solidão. Com a ideia de que só um
outro pode te completar e dar sentido a uma existência, traz consigo
diversas consequências que eu acho que são inevitáveis enquanto seres-humanos.
Pode se mudar os tempos, mas não se pode fugir completamente das heranças do
passado. E também, o que seriam dos cantores românticos com suas melodias e
rimas fáceis de abnegação e total entrega sem essa visão turva?
A manutenção de histórias baunilhas e puras como a de Isshuukan
Friends e Kimi ni Todoke vem exatamente dessa necessidade, às vezes até mesmo inconsciente, de continuar sonhando uma idealização inalcançável do amor, que para
muitos faz parte da própria concepção de existência, vinculando seus destinos a
uma realização amorosa. Há outras narrativas mais cínicas, mais amargas,
trágicas e etc., mas todas compartilham estrutura similar da felicidade e plena
existência exclusivamente na união de duas pessoas. Indo um pouco além, a
figura feminina, também na grande maioria desse tipo de obra romântica, ainda é
aquela que precisa ser salva e iluminada (não
precisa ser literalmente) pela benevolência dos sentimentos e
cavalheirismos do príncipe-herói, que claro, quer em troca toda a atenção e
resignação por parte da mocinha. É o que se espera e algo que pode apresentar
diversas nuances e reações diferentes, mas partindo sempre deste mesmo
arquétipo. Vamos pegar como exemplo os protagonistas de Isshuukan e Kimi ni, ambas
as obras de demográficos diferentes (um
é shounen e o outro é shoujo) e perspectivas diferentes (no primeiro; um personagem masculino é o
narrador, e no segundo; uma personagem feminina), no entanto abordam o
mesmo ideal e apresentam príncipes-heróis delicados, românticos, hesitantes,
falhos. Ainda assim: dominadores, porém sempre de uma forma passivo-agressiva. Eles
são personagens estereotipados, e mesmo que você se deixe enganar por suas
ações soarem tão humanas, eles são arquétipos.
Seguindo a ótica patriarcal, do mocinho que busca explorar e
dominar o universo, a mocinha busca se tornar o universo explorado e dominado
por ele, com uma metáfora para o papel da mulher na sociedade. Kazehaya
corresponde a uma idealização feminina, de homem romântico, doce, bonito, um
pouco tímido e conservador. Yuki é estruturado para que possa gerar simpatia e
identificação masculina. Ele não é muito bonito, nem esbelto, inexperiente e
inseguro; seu traquejo e timidez não seduz da mesma forma que acontece com Kazehaya,
mas ainda é amável, suas ações por mais equivocadas que sejam sempre trazem uma
boa motivação (que servem para que se
perdoe ele facilmente). São dois personagens idealizados, hesitantes, bonzinhos,
conservadores e possessivos. Muito possessivos.
Tudo isso gera um interessante paradoxo: quando nos
irritamos com as posturas passivas e hesitantes destes personagens, subjetivamente
esperamos que eles assumam sua posição de dominar e então dominem e explorem os
mares das mocinhas. As mocinhas, claro, estão cumprindo o seu papel como
passivas a espera de serem desbravadas, cabe ao personagem masculino tomar uma
atitude (a declaração, o beijo, a
entrega), mas na ausência de uma postura agressiva (sendo a passividade e indiferença uma característica do homem moderno
que parece muito bem representado em animes e mangás related), sobra a
frustrações e a revolta por parte do mocinho pela mocinha não perceber algo tão
trivial, de que ela pertence a ele, legitimo merecedor de sua atenção e
submissão. Paradoxal! A insegurança gera ciúmes, mas o desejo da posse do outro
(seja homem ou mulher) é algo muito
mais intrínseco no subconsciente de alguém que foi modelado por uma sociedade
patriarcal. É nessa necessidade de ter alguém esperando para ser salvo (querendo ser amado e ter seus problemas
solucionados por este amor) e então você se tornar indispensável e essa
pessoa se converter em sua dependente emociona, é que reside a gênese do amor
idealizado. Não por acaso, haréns são geralmente estruturados na figura de um herói
(ou vários, no caso de um harém feminino
tradicional) que irá ajudar e ganhar o coração abnegado de diversas garotas.
Como eu li certa vez, está tudo bem se a Bela Adormecida enquanto espera a
chegada do seu príncipe, parta em uma viagem de descobertas de si mesma dentro
de si mesma, desde que essa viagem a prepare para aceitar seu papel estipulado
na narrativa do príncipe-herói.
“Você é um saco” – diz Shougo Kiryuu a seu amigo imaturo e egoísta. Com o qual eu concordo plenamente.
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