sábado, 24 de maio de 2014

Um Olhar no Romantismo Retrógrado (de Isshuukan Friends)

“Bom, ele é gentil, muito confiável, e atencioso” – Kaori sobre Yuuki 
Ando a assistir Isshuukan Friends e desde o episódio 4 que o personagem Yuuki Hase (imagem) vem me chamando a atenção na relação que mantém com sua amizade colorida, Kaori Fujimiya (imagem). Na história, Kaori é uma garota que sofre um distúrbio psicológico, só conseguindo reter memórias de amigos e pessoas que gosta (fora a sua mãe), por uma semana apenas. Até que Yuki se aproxima e mostra que ela pode ser capaz de superar estes obstáculos. Algo similar ao filme Como se Fosse a Primeira Vez (50 First Dates).
Aliás, Isshuukan Friends se assemelha à Como Se Fosse a Primeira Vez não apenas na questão da perda de memória, mas também em como o protagonista vivido por Adam Sandler se posta como um príncipe-herói descolado do século XXI que devolve a personagem de Drew Barrymore à “vida”, tal qual acontece em A Bela Adormecida [e suas colegas princesas]. Essa estrutura é percebida na maioria esmagadora dos romances, sejam eles voltados para o público masculino ou feminino. Haréns, visual novels, light novels, shoujos e shounens românticos, livros, filmes, novelas, etc. e etc. Em Kimi ni Todoke, Sawako é uma menina perdida que só consegue se encontrar quando descobre o amor na figura do romântico e gentil Kazehaya. Ele a estende a mão quando todos ignoravam e repudiavam sua presença, e só então a partir deste gesto, Sawako entra num processo de aceitação por parte dos demais e de si mesma. Ela ainda demonstra uma atitude complacente de submissão, fragilidade, docilidade; são características que nunca vão desaparecer, enquanto Kazehaya é o seu Norte, o farol num mar obscurecido pela escuridão da noite, ele o sol e ela o girassol.

Isshuukan Friends e Kimi ni Todoke são duas obras que eu gosto bastante, especialmente a última citada. Ambas se assemelham estruturalmente e ideologicamente, através do paradigma de um amor altamente idealizado, abnegado, submisso, conservador e extremamente puro. Ambas também se assemelham a grande parte da idealização romântica das personagens femininas do Romantismo brasileiro, onde as mulheres retratadas reivindicam o amor e renunciam a si mesmas, pois se confunde este sentimento como sendo a própria razão de existir e à força destino ao admitir a possibilidade de morrer por este amor. Como é fácil de perceber através de diversas mídias, gêneros e demográficos, não se trata de um conceito ultrapassado e tão pouco característico apenas de uma cultura. A ideia romântica de que não existe vida após o amor idealizado e a falsa impressão (como algo cognitivo) de que será algo a perdurar indefinidamente ainda persiste – só que sem o olhar trágico do século passado, afinal no nosso mundo contemporâneo tudo é reciclável, substituível e instantâneo. Sinais de uma sociedade conectada, mas carente e com medo da solidão. Com a ideia de que só um outro pode te completar e dar sentido a uma existência, traz consigo diversas consequências que eu acho que são inevitáveis enquanto seres-humanos. Pode se mudar os tempos, mas não se pode fugir completamente das heranças do passado. E também, o que seriam dos cantores românticos com suas melodias e rimas fáceis de abnegação e total entrega sem essa visão turva?
A manutenção de histórias baunilhas e puras como a de Isshuukan Friends e Kimi ni Todoke vem exatamente dessa necessidade, às vezes até mesmo inconsciente, de continuar sonhando uma idealização inalcançável do amor, que para muitos faz parte da própria concepção de existência, vinculando seus destinos a uma realização amorosa. Há outras narrativas mais cínicas, mais amargas, trágicas e etc., mas todas compartilham estrutura similar da felicidade e plena existência exclusivamente na união de duas pessoas. Indo um pouco além, a figura feminina, também na grande maioria desse tipo de obra romântica, ainda é aquela que precisa ser salva e iluminada (não precisa ser literalmente) pela benevolência dos sentimentos e cavalheirismos do príncipe-herói, que claro, quer em troca toda a atenção e resignação por parte da mocinha. É o que se espera e algo que pode apresentar diversas nuances e reações diferentes, mas partindo sempre deste mesmo arquétipo. Vamos pegar como exemplo os protagonistas de Isshuukan e Kimi ni, ambas as obras de demográficos diferentes (um é shounen e o outro é shoujo) e perspectivas diferentes (no primeiro; um personagem masculino é o narrador, e no segundo; uma personagem feminina), no entanto abordam o mesmo ideal e apresentam príncipes-heróis delicados, românticos, hesitantes, falhos. Ainda assim: dominadores, porém sempre de uma forma passivo-agressiva. Eles são personagens estereotipados, e mesmo que você se deixe enganar por suas ações soarem tão humanas, eles são arquétipos.

Seguindo a ótica patriarcal, do mocinho que busca explorar e dominar o universo, a mocinha busca se tornar o universo explorado e dominado por ele, com uma metáfora para o papel da mulher na sociedade. Kazehaya corresponde a uma idealização feminina, de homem romântico, doce, bonito, um pouco tímido e conservador. Yuki é estruturado para que possa gerar simpatia e identificação masculina. Ele não é muito bonito, nem esbelto, inexperiente e inseguro; seu traquejo e timidez não seduz da mesma forma que acontece com Kazehaya, mas ainda é amável, suas ações por mais equivocadas que sejam sempre trazem uma boa motivação (que servem para que se perdoe ele facilmente). São dois personagens idealizados, hesitantes, bonzinhos, conservadores e possessivos. Muito possessivos.
Tudo isso gera um interessante paradoxo: quando nos irritamos com as posturas passivas e hesitantes destes personagens, subjetivamente esperamos que eles assumam sua posição de dominar e então dominem e explorem os mares das mocinhas. As mocinhas, claro, estão cumprindo o seu papel como passivas a espera de serem desbravadas, cabe ao personagem masculino tomar uma atitude (a declaração, o beijo, a entrega), mas na ausência de uma postura agressiva (sendo a passividade e indiferença uma característica do homem moderno que parece muito bem representado em animes e mangás related), sobra a frustrações e a revolta por parte do mocinho pela mocinha não perceber algo tão trivial, de que ela pertence a ele, legitimo merecedor de sua atenção e submissão. Paradoxal! A insegurança gera ciúmes, mas o desejo da posse do outro (seja homem ou mulher) é algo muito mais intrínseco no subconsciente de alguém que foi modelado por uma sociedade patriarcal. É nessa necessidade de ter alguém esperando para ser salvo (querendo ser amado e ter seus problemas solucionados por este amor) e então você se tornar indispensável e essa pessoa se converter em sua dependente emociona, é que reside a gênese do amor idealizado. Não por acaso, haréns são geralmente estruturados na figura de um herói (ou vários, no caso de um harém feminino tradicional) que irá ajudar e ganhar o coração abnegado de diversas garotas. Como eu li certa vez, está tudo bem se a Bela Adormecida enquanto espera a chegada do seu príncipe, parta em uma viagem de descobertas de si mesma dentro de si mesma, desde que essa viagem a prepare para aceitar seu papel estipulado na narrativa do príncipe-herói.