quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ping Pong The Animation (2014): A Jornada do Herói

Sempre que estiver em apuros, não se esqueça de proferir as palavrinhas mágicas: Hero Kensan, Hero Kenzan, Hero Kenzan! – e ele virá em seu auxilio.
Não faz muito tempo Space Brothers estava encantando com sua premissa de que sonhar faz bem e que a verdadeira felicidade está em perseguir estes sonhos, que não há nada de mal em descobrir novos sonhos e que o esforço colocado para alcançar esses objetivos é o que possibilita a abertura de novos horizontes quando o que se planeja inicialmente, não pode se realizar. O protagonista de Space Brothers era um trintão que sempre teve uma admiração por seu irmão e sonhava em ir à lua, mas na passagem da adolescência pra vida adulta algo aconteceu e ele esqueceu esse sonho, seguindo uma profissão que lhe dava segurança, mas não o fazia se sentir realizado. Até reencontrar novamente sua inspiração na figura do seu irmão, seu ídolo.

Ídolos são heróis e heróis são um símbolo importante, do ponto de vista psicológico, do nosso mundo e o que viremos a ser. São personagens, reais ou fictícios, que inspiram a vontade no outro em almejar a busca por um ideal. Referências são importantes, é a partir de referências [conscientes ou inconscientes] que nos formamos como indivíduos e do coletivo nos tornamos individuais. Em tempos em que o cinza e o anti-heroismo são elementos predominantes no entretenimento [atendo a demanda social que pede por um pouco mais de cinismo], é revigorante ver uma fantasia em que o herói sempre vence e salva a todos no final.
Talvez simplista demais ou ingênuo, mas é disto que se trata a essência de Ping Pong The Animation, adaptação do premiado mangá de Taiyo Matsumoto. Essa essência encontra seu fulgor máximo na amizade masculina através do prisma de um esporte radical – falo da forma como ele é retratado aqui; enérgico, viril, pulsante. O autor utiliza de angulações complexas e uma narrativa visual em constante transformação, usando para alcançar este fim diversas técnicas, das mais simples linhas tremulas à linhas grossas com backgrounds explosivos, imersivos, caóticos. Uma estética áspera que transmite bem a agressividade e brutalidade sentida no ímpeto de cada personagem, especialmente quando estão jogando onde cada raquetada é como se vida de quem a golpeou dependesse daquilo. É neste vigor jovem que a cinética e o surrealismo de Ping Pong se misturam e formam um quadro fascinante do existencialismo humano.

Eu sei o que eu disse. É mesmo uma história simples sobre a amizade e a importância para uma criança na figura de um herói invencível disposto a se sacrificar por uma boa ação. O enredo nos fala sobre isso: um grupos de personagens encontram seus destinos intrinsecamente conectados através de um esporte e duelam entre si para serem o melhor naquele torneio. Jogando por diferentes razões, cada um deles começa com vários níveis e habilidades diferentes. Contudo, ao longo do caminho eles perderam de vista o que os fez amar pingue-pongue.
Oh, sim, a partir disto mesmo quem não conhece a série já consegue imaginar como essa premissa se sucede. Oras! O próprio esporte lhes mostrará o caminho de volta, se reencontrando dentro de si mesmos. O Esporte é o gênero – assim como o Mahou Shoujo é para as meninas – que melhor representa toda essa questão de amizade e superação. Por isso eu dizer o quão simples e obvia é a estrutura de Ping Pong, mas temos que nos ater que essa é apenas a primeira camada.

Ping Pong tem essa construção de mangás para meninos, mas uma densidade e maturidade ao tratar do coming of age típico de mangás seinens. Ao ponto do esporte em si ficar em segundo plano em contraste aos conflitos vivenciados pelos personagens. Em Ping Pong The Animation, os torneios e as partidas têm pouco destaque. É importante percebemos que o pingue-pongue em Ping Pong (sacaram?! Heh) é um meio e não o fim. O que certamente se mostrará frustrante em algumas ocasiões – como, por exemplo, o final anticlimático em que o autor não temeu focar em questões humanas em detrimento do ímpeto causado pela expectativa da confrontação final há muito esperado – porque há muita energia e envolvimento imersivo nas partidas. E logo num esporte tão pouco valorizado como o pingue-pongue (tênis de mesa). Mas se existe uma série de esportes que utiliza o karuta, um esporte regional impopular até mesmo no Japão, qualquer esporte pode render excelente trabalhos ficcionais, sendo mais emocionante que o esporte verdadeiro.

Repetindo a velha máxima, a melhor serie de esporte é aquela que valoriza o fator humano para despertar o torcedor que há em você. Como no clássico Rocky: Um lutador de 1976, em que a maior parte do filme é sobre a trajetória de como Rocky Balboa a certa altura da vida encontra um novo objetivo que pode dar significado para sua vida miserável através do boxe, Ping Pong também não se furta a passar boa parte dos 11 episódios com os personagens procurando se libertar de suas prisões interiores.  
Em uma das passagens mais emblemáticas da série, é natal e num clipe musical cantado em karaokê por Kon “China” Wenge (Yosei Bun) acompanhado em coro por aqueles que estão ao seu lado, tem um magnifico contraste evidenciando a perspectiva de cada um naquela noite de natal. A ignorada em pleno natal Yurie (Ayako Kawasumi) fantasia em sua mente um encontro romântico com seu amado Ryuuichi “Dragon” Kazama (Shunsuke Sakuya), que passa a noite treinando arduamente, focado em vencer o próximo torneio. Enquanto isso, Sanada namora o pôster de Yurie sobre sua cama, alimentando sua paixão platônica pela garota. Manabu “Demon” Sakuma (Subaru Kimura) trabalha como proletariado em pleno natal, longe do glamour do esporte. Yutaka “Peco” Hoshino (Fukujuro Katayama) perambula bêbado pela praia deserta e escura. Seu amigo Makoto “Smile” Tsukimoto (Kouki Uchiyama) comemora solitário numa casa vazia em uma cena que evoca sentimentos angustiantes.

Estão todos de certa forma presos, o que cria uma conexão obvia com a representatividade que as asas e os pássaros possuem na série. Wenge é um egocêntrico jogador chinês que é “exilado” no Japão, com sua volta condicionada à conquista do torneio, mas é eliminado duas vezes, fazendo com que sua estadia no Japão se torne uma verdadeira prisão. As cenas do personagem são sempre envoltas em recordações nostálgicas e sua angustia é exaltada através de aviões que vão ganhando altura até desaparecerem. O bacana dessa associação é que existe essa rivalidade nacionalista entre China e Japãom acentuando a angustia de Wenge ao ser obrigado a se recuperar perante seu país em um lugar tão pouco agradável. Com o tempo ele vai se adaptando e se transformando. A sua derrota para Peco abre para ele uma nova perspectiva muito similar à de Sakuma: você sempre pode se reerguer, começar de novo, traçar um objetivo diferente. Como repetido exaustivamente no anime, alguns pássaros simplesmente não podem sair do chão e voar.
Kazama vive o dilema de carregar a honra da família sobre os ombros e para isso, precisa estar sempre vencendo para a escola de seu tio, o que faz com que ele sinta sempre uma enorme pressão pelos resultados positivos. Com a infância arruinada por uma família tradicionalista disfuncional, ele é convicto em responder que heróis não existem e que não admira ninguém. Quando perguntado por quem ele joga, suas respostas são contraditórias e pouco verdadeiras, refletindo sua natureza de se esconder sobre uma enorme muralha. Sua derrota quebra todos os seus paradigmas em uma sequência absurdamente enlouquecedora que é sem dúvidas o ponto mais alto de todo o anime. Ele redescobre o prazer de jogar pingue-pongue pelo puro e simples prazer, em que o resultado final pouco importa.

Smile é tão genial e perfeito em suas investidas, que mais se assemelha a uma máquina, o que lhe rendeu o apelido de “Robô”. Enquanto joga, ele não demonstra emoções, mas uma enorme indiferença, ao ponto de se deixar perder para favorecer o adversário. Para ele, jogar soa uma obrigação dolorosa. Cobrado pelo seu talento, Smile resolve levar o torneio a sério e se transforma numa máquina incapaz de sentir, e isto inclui a diversão ao jogar. O que vem pela frente ele massacra com indiferença. Já Peco é seu amigo de infância, extremamente talentoso, mas voluntarioso e caprichoso, ao ponto de não suportar ser humilhado naquilo que ele faz de melhor e abandonar o esporte.

Essa é a historia Peco e Smile e de como várias histórias que se entrelaçam com as deles são afetadas diretas e indiretamente por suas ações, em uma grande teia envolvendo do destino. Peco e Smile são o completo o oposto um do outro, enquanto o primeiro é introspectivo e sofre as consequências de seu comportamento que foge do padrão, o segundo é carismático e valente, salvando-o dos constantes ataques de bullying. Peco diz que toda vez que precisasse era só chamar pelo herói, seu alter ego. Eles se tornam muito amigos e Peco apresenta o pingue-pongue para Smile como algo que ele ama tanto, ao ponto de contagiar o amigo e admirador. É ao se lembrar deste ponto da infância e de como ele era importante para Smile, que Peco redescobre sua paixão pelo pingue-pongue e consequentemente seu objetivo.
Peco reitera a jornada do herói, conceito de Joseph Campbell acerca de uma jornada cíclica presente em grande parte dos mitos criados pela humanidade e recheia a nossa cultura pop. Assim como grande parte dos heróis contemporâneos, Peco vive um instante de crise de identidade, sem rumo ou objetivos. Ideologicamente um herói é aquele que se sacrifica por algo, que é admirado, figura inspiradora. Todo herói quando começa a ser esquecido ou se desvirtua de seu caminho se perde e fica preso ao solo, resultando em uma contínua desestruturação psicoemocional. Peco se corrompeu pelas vitórias fáceis e, incapaz de lidar com a derrota, fugiu. Ele havia se esquecido de como é ser um herói, pois caso se lembrasse, saberia que um herói não deve desistir nunca, mas persistir, porque um herói sempre vence no final. Acontece que para qualquer herói caído, o chamado de volta por aqueles que precisam dele é a única coisa possível de fazer seus conflitos existenciais se tornarem insignificantes.

Um dragão, um demônio, um robô, um “china”, todos com habilidades extraordinárias, mas dentre todos o único que possui asas capaz de alçar longos voos é o herói. É só ele que pode salvá-los da prisão em que se sentem. O dragão europeu em sua mitologia rouba ouro e mulheres virgens e prende numa caverna, mas é incapaz de tirar proveito de qualquer uma dessas coisas, não havendo prazer na experiência. Psicologicamente, o dragão significa se ater ao próprio Ego, criando uma muralha que repele os anseios, objetivos e desejos da pessoa. É preciso romper essa muralha derrotando o dragão. Um robô executa, mas não sente, é perfeito, mas não consegue experimentar prazer em suas ações. É indiferente a tudo que o rodeia. Uma armadura desenvolvida para se proteger dos constantes ataques externos.

Essa simbologia em torno do animal que representa Kazama ilustra com exatidão o desenrolar do personagem na história. A de Smile é essencial para percebermos o que move o personagem. Ele não se interessa em seguir carreira, fazer nome, nada disto, ele apenas queria se divertir e sentir prazer jogando. Era quando ele se sentia realmente livre de imposições e feliz. Ele que sempre fora o personagem mais incógnito do anime, de repente foi desvendado em um único episódio. Eu não pude deixar de me sentir lisérgica, relembrando o quanto me indaguei sobre sua inexpressividade.
E é disso que se trata Ping Pong. Obras focadas no esporte no Japão falam muito de sonhos e a importância de se ter um – curiosamente os primeiros mangás com personagens femininas voltadas para garotas no Japão surgiram com a participação feminina nas olimpíadas, refletindo o sonho que todos tinham pela medalha. Ter alguém ou algo a quê se espelhar e influenciar é fundamental na formação de um individuo, de participação de mulheres negras na tv surgiram o sonho de varias meninas que se sentiram capazes em conquistar grandes cargos, do sonho de voar fez com que o homem se dedicasse a construir uma máquina que pudesse fazê-lo planar no ar, dai até romper o espaço, era questão de tempo. Sorte daqueles que têm um herói.

Dirigido por Masaaki Yuasa, Ping Pong The Animation teve uma produção problemática, o que refletiu na qualidade da animação no vídeo. Felizmente quem estava no comando era Yuasa, que utiliza a expressividade visual para causar impacto e a agressividade necessária para evocar emoção. Com uma narrativa cinematográfica, ângulos tão difíceis e tão pouca disponibilidade para uma animação mais fluida, Yuasa mostra que pode sim construir uma canoa com poucos pedaços de pau. Ele adaptou o roteiro e fez todos os storyboards, a partir disso é perceptível seu envolvimento nas etapas de produção.

Em uma entrevista para o Noitamina, bloco em que Ping Pong foi exibido, Yuasa comenta que ficou em dúvida em aceitar dirigir um mangá tão antigo e já adaptado anteriormente, por achar que “Hoje em dia, parece que é difícil ter sonhos”, diz ele, “neste ambiente, não ha sentido em fazer algo sobre o triunfo de um herói”. Indagado se precisou sofisticar a linguagem da série, ele responde que “O original de Ping Pong já é sofisticado, então eu não precisei acrescentar nada nele. Na verdade, eu fiz intencionalmente um pouco mais simples”. De fato, os personagens soam mais atraentes – por mais absurdo que pareça essa declaração – no anime que no mangá. Ainda assim é notável a assinatura de Yuasa mesmo em uma adaptação o mais fidedigna possível. Digno de nota é personagem Yurie, que é original do anime, imagino eu, criada para que o público feminino tivesse algum referencial. A despeito de sua pouca participação, também se tornou uma personagem riquíssima dentro da história.
Ping Pong The Animation que é exemplar como obra audiovisual, no sentindo de que ele se comunica pelas imagens, sem diálogo exageradamente expositivos e redundâncias afins, apostando na capacidade de quem vê em pegar todos os detalhes, que, diga-se de passagem, são óbvios. Como por exemplo, as borboletas e suas larvas que ao lado dos pássaros e aviões, estão sempre representativos no anime, evidenciando a sempre complicada mudanças de ciclos, abandono da velha casca para uma nova, constante transformação. Mas quando se sabe o que quer e faz o que gosta, tudo mais parece mais simples, não é mesmo? Em retrospecto, a minha única grande queixa, é o final não conseguir conciliar a vontade do espectador em ver uma partida final explosiva com a necessidade do enredo de entregar sua mensagem. Pode parecer nada, mas mesmo um início mais lento pesa bem menos na memória afetiva que um final corta clima. 

Nota: 08/10
Direção: Masaaki Yuasa
Estúdio: Tatsunoko Production
Trilha sonora: Kensuke Ushio
Tipo: Tv
Episódios: 11
Páginas: ANN, MAL

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Galeria

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