quarta-feira, 19 de abril de 2017

Kino no Tabi – Episódio 04: Terra dos Adultos

Kino é uma personagem construída sobre um arquétipo andrógeno, fato que obviamente levou muitos que acompanharam Kino no Tabi em sua exibição original questionarem acerca de seu gênero, tal qual a hiperativa Ed de Cowboy Bebop
No entanto, para quem já tem um bom número de animes assistidos e está confortavelmente ambientado com estereótipos de light novels e animes japoneses, jamais teria dúvidas de que Kino é uma menina, a despeito de seu nome, como é comum em muitos nomes japoneses não possuir um gênero definido.

Assim, esse episódio é o mais direto e menos abstrato de todos até aqui nessa jornada, contando a origem e a primeira aventura e Kino como a conhecemos.  

Kino nem sempre era um viajante, e nem sempre se chamou Kino. Quando criança, ela cresceu na Terra dos Adultos, um lugar onde a idade adulta e a responsabilidade são alcançadas por meio de uma operação realizada no décimo segundo aniversário de cada criança. Como uma menina de onze anos de idade, assim como todas as crianças daquele reino que foram condicionadas a aceitarem este destino, Kino acreditava ser natural que cada criança se submetesse à lobotomia e abdicasse de sua individualização em prol do coletivo ao se submeter à operação para se tornar um adulto, até que um viajante misterioso visitou seu país e a instigou a um questionamento acerca da legitimidade da ideologia daquele pais. 

Em um conto distópico em tom fabulesco, o episódio Land of Adults -Natural Rights embora seja direto e seco ao que se propõe, sem as habituais acentuações de não certeza do ser onde nunca se chega a uma só verdade, não abre mão da característica verne poética e melancólica acerca da essência humana. Oras, é algo notório na crença e cultura japonesa sobre a importância, apesar de toda a ambivalência do ser enquanto criatura pensante, da sobreposição do coletivismo em relação ao individuo. É algo gritante em boa parte da cultua pop japonesa que se venha a consumir. O que a faz entrar diretamente em conflito com a cultura ocidental. 

Então, considerando que uma criança deixa de ser meramente uma criança e entra no processo de se tornar adulto a partir dos 12 anos – adolescência –, é compreensível que se tenha estipulado uma cirurgia onde esse processe é retido, ali mesmo.
Mas, pera! O enredo do episódio não era acerca de crianças se tornando adultas precocemente? Ai está um dos pontos onde o episódio é fiel à natureza de Kino no Tabi e nos banha em um processo de sutileza, pois nos é dito a certa altura que os adultos não se chateavam (ou questionavam) com o trabalho que lhes eram incumbido e estavam sempre felizes e sorridentes. 

Entende-se ai que o processo de lobotomia naqueles habitantes não era acerca de apenas paralisarem um natural amadurecimento mental, mas também de lhe incutirem ideias e ideologias, transformando-os em uma espécie de vegetal. Como em um romance de George Orwell (1903-1950), não se questiona nada ali, apenas agem de acordo para o bem do coletivo e a própria mentalidade daqueles habitantes é extremante infantilizada e incapaz de lidarem com qualquer eventualidade que fuja do protocolo programado, vide o que ocorre quando o pai de Kino apunhala o verdadeiro Kino, por engano. Não há um senso de arrependimento ou questionamento de certo e errado, sua mentalidade é estritamente pura no sentido mais literal da palavra. 
Assim como as distopias cyberpunks, este episódio de Kino no Tabi é um inteligente e estimulante comentário social em relação à própria cultura japonesa sobre o pensando coletivista, onde a hierarquia em prol do bem do grupo é obedecida mesmo que soe absolutamente imbecil, como também é notável no episódio 5. A semente do questionamento fora plantada na jovem Kino pelo Kino original, que sempre sofrera bullying por ter um nome que aparentemente soava sugestivamente pornográfico, em relação ao padrão do grupo; fato este que torna sua germinação mais fácil em relação aos demais, uma vez que ela já se sentia em desacordo com o coletivo. 

Em uma outra história, Perter Pan (um conto que abrange a essência do sujeito individualista – um contraponto retumbante sobre a natureza conflitiva do coletivismo japonês) abdicava do direito de crescer para não ter que lidar com todos os conflitos inerentes à maturidade tendo que abrir mão do seu mundo de fantasias. Contudo, Kino no Tabi trata de demolir essa crença de que toda criança vive em um universo encantando, apesar de em essência por não compreenderem em totalidade toda a carga existencialista que o ser humano carrega, sua capacidade de lidar com esses conflitos pode vir a se mostrar muito mais simplória, se isolando justamente num mundo de fantasias e faz de contas. É exatamente o que o processo de lobotomia tenta alcançar na adulteração do ser. 

Esse é um episódio essencial para todos aqueles que amam Kino no Tabi e essa sua proposta de levar o questionamento e a poesia acerca de existência humana. Ao final do episódio eu estava completamente atônita com a capacidade da série de ir além do que eu jamais poderia supor com um conteúdo, para os seus moldes propostos até então, pesado e denso – sem toda aquela leveza habitual. Claro, a estrutura é fabulesca permanece, portanto não nos cabe questionar em como crianças se transformam fisicamente em adultos e todo o processo cientifico por trás disto, pois, a ideia é justamente apresentar um conceito. Assim como também jamais questionamos a habilidade de fala de uma moto chamada Hermes (apesar que dá pra formar algumas teorias a respeito, como: será que isso só existe na cabeça da Kino, uma vez que com o original, não ouvíamos a moto falar com seu dono?). Neste aspecto, este é um dos episódios mais felizes e emblemáticos da animação japonesa. 

Diretor: Ryutaro Nakamura
Diretor do episódio: Kooji Kobayashi
Storyboard: Kooji Kobayashi
Roteiro: Sadayuki Murai
Exibição original: 06 de Maio de 2003


Temas Relacionadoss: