sexta-feira, 27 de julho de 2012

Hiroaki Samura: Bradherley's Coach


“... Pensando bem, desde o começo, ela tinha a sensação de que as coisas não estavam muito bem.” – Capítulo 01: Looking Back At Home.

Sinopse: Nicola A. Bradherley, o 4º homem mais rico da Grã-Bretanha e um membro da Câmara dos Lordes, é visto por muitos como um filantropo. A cada ano, ele adota uma série de meninas afortunadas de orfanatos em todo o país em sua família, enviando o seu cocheiro de orfanado em orfanato para recolhê-las. Algumas dessas meninas ainda têm sorte e viram atrizes na famosa companhia de Ópera (um teatral musical) dos Bradherley (o que na verdade, é o sonho de todas elas). No entanto, nem todas são tão afortunadas. A grande maioria acaba tendo um destino realmente muito...MUITO  infeliz. Vejam só, o Lorde Bradherley tem um outro uso para todas as garotas que não chegam ao palco principal. Algo terrível, desumano... E que tem o apoio do governo.

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Bradherley no Basha (em tradução livre, A Carruagem dos Bradherley) é mais uma daquelas séries intermediarias de Hiroaki Samura, se situando entre a comédia romântica Ohikkoshi ou aquele épico de espadas e sandálias, a “desconstrução” samurai chamada Blade:A Lâmina do Imortal (Blade of the Immortal). Entre os longevos hiatos de sua obra máxima, Blade, Samura publicou diversas obras curtas, a grande maioria é material fetichista que invariavelmente acaba flertando com o guro, como o já comentado aqui; Hitodenasi no Koi. Enquanto nem todas as suas séries apele para o ero-guro, a grande maioria possui aspectos misóginos, que é o grande fetiche de Samura. Mesmo aquelas em que Samura optou por um roteiro, ao invés de puro fetichismo masturbativo.  É o caso de Emerald e a série tratada aqui... Bradherley no Basha.


O curioso é que Bradherley no Basha inicialmente era pra ser um material puramente erótico [como comentado pelo próprio Samura], mas as cenas de sexo foram diminuindo e diminuindo após os primeiros capítulos. O que explica a quebra de narrativa, onde a segunda parte do mangá possui um roteiro muito mais denso e com um engajamento politico notável. Ou ao menos, foi uma tentativa de Samura, onde o próprio acabou claramente se perdendo na narrativa [como ele mesmo reconhece: “Comecei querendo fazer um mangá erótico, mas as cenas de sexo foram diminuindo no caminho, e no fim eu não sabia o que queria escrever”]. O que acaba refletindo na qualidade final da obra. Mesmo o último capítulo, sofre com a falta de uma catarse para fechar a história satisfatoriamente.

Bradherley no Basha é Anne of Green Gables encontra Marquês de Sade. Explico, Anne de Green Gables é um clássico canadense, onde Anne, uma garotinha órfã sardenta com seus longos cabelos vermelhos [e ela odeia essa aparência/Detalhe irrelevante de fangirl do livro], acaba sendo adotada por engano. Como o contato foi feito através de um intermediário, a garota acaba indo por engano, mas ao se deparar com a tagarelice e a espontaneidade de Anne, o casal decide ficar com a garota. Como podem notar, há sutilmente uma certa similaridade entre os plots. As garotinhas de Bradherley no Basha são órfãs sonhadoras, que fazem o trajeto do orfanado ao suposto castelo de Bradherley com certa insegurança, olhando descritivamente o ambiente em volta [assim como Anne o fez] e imersas em pensamentos, mas com a esperança de quê o que encontrará pela frente, é bem melhor do que está ficando para trás. “Apesar de falar pouco, a garota estava na verdade ocupada sonhando com outras coisas” – Trecho primeiro capítulo, Looking Back At Home. Há muito detalhes presentes nessa série, que fora inspirado diretamente em Anne de Green Gables, mas o mais notável são os nomes Mateus, Marilla, Ruby, Diana, Gables e Ingleside.


“Comecei a escrever este mangá após ficar fissurado pelos livros da Anne há três anos, e disse ao meu editor que eu faria uma série de mangá sobre alguém como a ruiva Anne. Mas como podem ver, não segui a risca.” – Hiroaki Samura

É... realmente é bem aparente que o que Samura imaginou: A pobre Anne inserida no universo ficcional do Marquês de Sade. Um universo misógino e sádico. Ou ao menos, esse foi o aspecto no qual Samura se viu influenciado, direto ou indiretamente, embora o universo de Sade é muito mais do que puro fetichismo. Segundo Sade, durante o período que esteve recluso, nenhum Deus, moralidade, afeição e esperança deveriam existir – apenas a extinção humana num delírio erótico terminal. O homicídio, a sodomia, o incesto etc., seriam os meios capazes para a obtenção desse fim. Erroneamente, considera-se que o sustentáculo da obra sadeana seja a perversão, porém, o ponto principal é o ateísmo intelectual para a qual segundo Sade, o bem e o mal não são aspectos antagônicos, mas sim essenciais para a manutenção do equilíbrio. Podemos chamar Sade de ateu exatamente como aquele que nega não a existência de Deus, mas como quem nega sua moral. Ou melhor, a moral criada pela religião que por sua vez é uma criação humana. Marquês fala de política, de moral, ética, descrevendo assim aquilo que se tentava encobrir, mas que é a raiz dos poderes, a tenebrosa natureza humana.


Em seu melhor romance, Justine ou os Infortúnios da Virtude [que tem uma adaptação em forma de conto no mangá de Senno Knife; “Sade” – Publico no Brasil pela Conrad], Sade expõe com vigor toda a sua filosofia revelando suas ideias sobre a política, a igreja, o amor, a Providência Divina e o sexo aos olhos do materialismo a partir dos mais bizarros e infelizes desencontros na vida de uma jovem devota que abre mão de seguir sua irmã ao tornar-se órfã de pai e mãe. Julieta aventurou-se pelos caminhos da má conduta ao prazer de ser livre com o intuito de ser uma grande dama portadora de grande riqueza. Conseguiu, mesmo que para isto tenha se utilizado de subterfúgios, tais como: crime, roubo, mentira, prostituição entre outros modos de vida descritos nas obras de Marquês de Sade. Enquanto isto, Justine, ao contrário de Julieta, dotada das mais belas virtudes, cairia nas mais ardis situações que colocariam à prova sua crença na Providência e na bondade dos homens. Em momento algum abandonou o caminho do bem. Duas irmãs separadas pela vida e pelo temperamento encontram-se anos mais tarde, uma rica e a outra sendo condenada ao cadafalso.

Em Bradherley no Basha, vemos puras e recatadas garotas sendo levadas na carruagem dos sonhos, onde acabam se deparando com um terrível pesadelo. Toda virtuosidade fora condenada com maltratos físicos, abusos sexuais e desespero. Mesmo a morte, lhes era negada. Paradoxalmente, a ironia e o cinismo também é um dos alicerces da obra sadiana, onde ser mais esperto não significa se dar bem no final. Vejo a ironia e o cinismo como o clímax do sadismo. É como se você pudesse sentir um prazer sem culpa, afinal, a pessoa fez por merecer aquele desfecho. No capítulo The Bond Of, duas amigas de internato estão prestes a se separarem, onde uma teve a “sorte” de ser adotada pelos Bradherley, e a outra deixada para trás. Obstinada, esta, numa trama maquiavélica atrai a amiga para a morte, ficando com sua vaga. O conto para ai, com a garota seguindo no lugar da amiga na carruagem dos Bradherley, desaparecendo no horizonte, imersa em um objeto que talvez nunca se realize. Samura não mostra o que acontece com ela, mas fica claro pelo tom sadicamente irônico da narrativa.


O interessante em Bradherley no Basha, é que a trama se situa num período de tempo – meados do século 20, por volta de 1910, na Europa dos influentes aristocratas – que torna o contexto extremamente verossímil.  E Samura percebeu que poderia explorar bem mais a história, atenuando o erotismo e partindo para uma narrativa então conhecida como filosofia sadiana. Diálogos que falam sobre o governo, a moral, relacionamentos familiares, troca de favores, mentira, crime, instinto animal... mas, claro, sem o mesmo primor narrativo de Sade ou mesmo seu discípulo fiel, Suehiro Maruo.

A esta altura, não cabe mais fazer segredo sobre o enredo. Eu preciso seguir com o meu vômito narrativo. A trama de Bradherley no Basha gira em torno do festival de Páscoa [o chamando “Projeto 1-14”] que visa saciar os desejos violentos e sexuais dos condenados à prisão perpétua. Uma ideia apoiada pelo governo, depois de uma grande revolta massiva de presidiários, onde garotas acima dos 13 anos [que são chamadas de cordeiros] são recolhidas uma vez por ano nos orfanatos que mantêm um acordo [em troca de grana] com o projeto, e jogadas nas selas onde são submetidas a várias sessões de estupro coletivo [em certo capítulo, uma garotinha é enfiada em uma sela com 68 condenados!]. Eles podem torturar as garotas da forma que quiserem, desde que não a matem. Mas, ainda frágeis, sendo vítimas de atos tão violentos, as garotas mal conseguem resistir a uma semana de abusos físicos consecutivos.


A narrativa de Samura não prima por uma técnica exemplar, mas brilha nos detalhes. Temos uma narrativa que mostra ambos os lados, com diversos pontos de vista que vai do da vítima, passando pelo detento, até chegar nas peças que fazem aquela engrenagem funcionar. Não é nada de mais para quem já está imerso nesse universo, mas para pobres almas e corações frágeis, tudo que é retratado nessa história será chocante, nojento, repulsivo ou até mesmo poderá te tirar o sono, dependendo do seu nível de sensibilidade [“Essa é uma história muito doente e perturbadora. Houve algumas cenas que eu não aguentei.” Comentário de um leitor].

Chocante? Talvez. Mas temos exemplos do mesmo conceito na História Mundial. A nobreza sempre gostou de entretenimento violento à custa de seus súditos. Durante o período romano, havia os gladiadores, período medieval, o bear baiting [luta entre um urso e um Bulldog] e as rinhas de cães. Em 1600 houve o caso da Condessa Elizabeth Bathory, que fora condenada à solidão, em uma prisão perpetua em seu castelo, onde foi praticamente entijolada viva (!). Fora outros adventos similares, o que mais se destaca realmente são as Comfor twomen [mulheres de alívio], um eufemismo utilizado para designar mulheres forçadas à prostituição e escravidão sexual nos bordéis militares japoneses durante a II Guerra Mundial.  O objetivo em facilitar esse projeto, era pensando na prevenção de crimes de estupro cometidos pelos integrantes do exército japonês imperial e evitando assim o aumento da hostilidade entre as pessoas em áreas ocupadas.

O capítulo quatro, A Family Shot, é um dos melhores [e talvez, o melhor capítulo do mangá] e representa a virada definitiva na narrativa, deixando de lado o poético, melancólico e trágico ponto de vista das garotas órfãs – que na verdade só explorou o lado erótico no primeiro capítulo, com os dois seguintes se focando no drama das garotas. Em A Family Shot, vemos a trama retratada pelo ponto de vista dos presidiários em uma múltipla narrativa. Se focando no “sistema” politico, onde um jornalista preso por saber demais, espalha algumas teorias sobre os Bradherley e o Projeto de Páscoa, mas acaba sendo silenciado. É um retrato obvio das engrenagens do sistema politico, capturado de forma esplendida por Samura em diálogos que predominam os cochichos, o boca a boca, a impunidade. Em outro ponto da mesma trama, os presidiários comentam sobre sua rotina, suas famílias e o ato libidinoso com os “cordeiros” que lhe são oferecidos no Festival de Páscoa.


“Caramba. Quando chega a época, todos eles... realmente não há melhor maneira de deixa-los comportados” – Como era de se esperar, todos ficam ansiosos, e se há algum que não concorda, ele se cala e observa a vítima indefesa completamente acuada. A moralidade do que acontece é questionada, mas nunca afrontada. Em uma cena impressionante, um dos presidiários acaba ficando frente a frente com sua filha, transformada em cordeiro para saciar a fome dos “lobos”. As situações se invertem. O sistema falhou e o homem que seguia indiferente a tudo, fazendo parte do jogo, virou a vítima. Seria magistral, se o desfecho fosse mais sínico, debochado, sádico e menos dramático.

Temos aqui então, a base principal para a história de Bradherley no Basha, que sim, se passa no período da Primeira Guerra Mundial, com o continente Europeu sendo palco de grandes conflitos. Conflitos estes que dão o tom para o desfecho da história, que acaba sendo bem ameno. Bradherley no Basha tem um conceito interessante e não apela para o erotismo descaradamente, apesar de ter sido a intenção inicial de Samura. Mesmo a primeira história, que tem uma pegada mais fetichista, está longe do primor gráfico que Samura já havia explorado em obras anteriores. Os ângulos e enquadramentos só mostram o necessário e não sei o que o Samura pretendia, mas não me parece nada erótico. A arte como já é típico de Samura, é muito bem detalhada e com seu caraterístico traçado a lápis, sem finalização e com algumas aplicações em nanquim que gera um conflito visual bacana entre o cinza rascunhado e o negro. A proporções estão são ótimas, ele sabe muito bem usar um espaço dentro de um quadro, alternando entre contornos suaves e grossos. A narrativa tem uns momentos de silêncio que são absolutos. Diálogos entrecortados, ora por um ambiente morto, ora por puro silêncio. É como se desse pra você sentir a gravidade da situação.


Ainda assim, mesmo sua representação artística aqui, não está em seu melhor e a narrativa possui algumas problemas de consistência. Poderia ser tomado como “liberdade poética” se Bradherley no Basha fosse puramente erotismo descarado, porém com um contexto sério e plausível, há de se questionar a conveniente falta de atitude de alguns diante o Festival de Pascoa, mesmo sendo evidente para qualquer um com dois neurônios que os números não batiam. De cada 10 garotas levadas do orfanato, apenas uma era realmente adotada. Eram muitas pessoas por dentro do que estava acontecendo, para que ficasse tanto tempo encoberto e sem que ninguém do lado de fora tomasse uma atitude, mesmo o Projeto tendo o aval do governo. Fora que, claro, era um projeto complexo demais, diante de alternativas tão mais simples. Essa inconsistência ainda é evidenciada por Samura no último capítulo, ao retratar o chefe da família Bradherley como alguém de que só fazia aquilo porque era necessário, mas que no fundo sofria por isso. O que eu posso dizer é “por favor, né Samura, não precisa subestimar a inteligência do seu leitor” – Assim, Bradherley no Basha é um exercício até interessante da filosofia sadeana [em um aspecto mais politico e menos polida], mas que acaba se perdendo na indecisão do seu autor sobre a mensagem final.


Nota: 06/10
Autor: Hiroaki Samura
Revista Manga Erotics F (editora Ohta Shuppan)
Ano: 2005
Volumes: 01 (finalizado)
Demografia: Seinen
Onde encontrar: Chrono/Fuji Scan