“A diferença entre o
medo e a comédia é mínima. Aqui está uma comédia sobre gatos, de um autor de
mangás de terror!”
Cat Diary é o mangá mais distinto já feito por Junji Ito e
muito se deve ao fato de ser autobiográfico. E também, o mais inusitado, onde
ele deixa – ao menos, teoricamente – o gênero horror de lado e se aventura no slice of life com pitadas de humor gag. As
histórias do Ito normalmente são repletas de desespero e desesperança, mas nem
sempre elas são [ou conseguem ser] inquietantes, há alguns contos que são
simplesmente divertidos, seja pelos personagens agirem de forma ilógica ou por
suas expressões de medo. Neste caso Ito acerta em cheio ao dizer que existe uma
tênue linha que separa o horror da comédia.
Na época que eu descobri a existência de Cat Diary, meus
olhos brilharam, pois como uma grande fã do Ito-sensei, sempre tive curiosidade
em vê-lo saindo de sua zona de conforto. Como grande quadrinista que é, mostrou
uma incrível técnica ao dominar com sutileza e maestria uma história feita
intencionalmente para ser engraçada. Ou... bizarra. Os diálogos não tendem a
ser engraçados, são apenas diálogos normais do dia a dia, triviais, e que podem
ou não soarem engraçados dependendo do contexto. Ito consegue emular essa
estrutura do cotidiano muito bem, mas satirizando a si mesmo e sua esposa.
Como o mesmo diz nos extras do mangá, a idéia de fazer uma
história baseado nos eventos reais da vida do Junji Ito, foi idéia de seu
editor. Junji Ito se descreve como alguém que ama cachorros, pela sua
fidelidade. A história se baseia em um emblemático momento da vida de Ito,
quando ele havia acabado de se mudar para sua casa nova, juntamente com sua
noiva, que no mangá recebe o nome de A-ko – enquanto ele tem o pseudônimo de
J., que se sente muito contente com essa sensação maravilhosa de estar em uma
casa nova, com papel de parede branco, assoalho brilhando, cheiro de lugar
novo, até que sua esposa resolve trazer Yon [um gato já velho e conhecido da
família] da casa de seus pais. É o começo da espiral do horror para J., que
sempre foi mais afável para com cães, por pensar que estes são mais leais aos
seus donos. Ao ver Yon, seu desespero começa, pois pela sua lógica, o gato
tinha cara de amaldiçoado. Isso dá inicio á diversas situações hilárias, com J.
imaginando o gato como um ser demoníaco e delirando sobre o mesmo ser uma
criatura bestial.
Pra piorar, A-ko decide arrumar mais um gato, para que Yon
não se sinta solitário. Este é Muu, que em comparação com Yon, é mais quieto e
é mais amoroso. Com isso, J. e A-ko precisavam adaptar a nova casa e à nova
realidade, fazendo várias modificações para atender a necessidade dos felinos.
As caretas e o tom irônico de J. são impagáveis. Têm inicio aqui, uma longa
batalha que por incrível que pareça, acaba sendo entre J. e A-ko, pela atenção
dos felinos. Dá lhe humor escatológico (que
aqui, é simplesmente funcional para qualquer público, não se limitando apenas para
o japonês médio), truques baratos, corridas desesperadas. Se inicialmente
J. se mostra desconfiado, não demora muito para que se afeiçoe aos gatos e
anseie por sua atenção, tanto quanto sua noiva A-ko acaba recebendo por parte
deles.
Cada capítulo é basicamente sobre isso; adaptação,
infortúnios, afeição. Não há um enredo, como já é de se esperar de um slice of
life, portanto não há clímax, catarse ou recursos de roteiro. Apenas situações
do dia a dia, que aqui ganha um roupagem atraente e inquestionavelmente
divertida. Quem tem gato em casa, irá se identificar de primeira como aconteceu
comigo. As situações são muito reais, você não sente como se o Ito estivesse
tornando uma seqüência ou outra mais interessante para o público, alterando e
até mesmo inventando situações. E neste compasso, invariavelmente você se pega
rindo em voz alta com as tentativas tolas de J. ao tentar se conectar com os
gatos e ganhar sua afeição e o seu ciúmes da relação de sua esposa com os gatos.
Como é dito pela A-ko, os gatos possuem seu próprio ritmo, mas você não tem
paciência para esperar, você quer brincar e se conectar com aquela coisinha
fofa e bonitinha em forma de bola de pelos. Um dos melhores capítulos, é quando
J. vai pro seu quarto vê A-ko dando chupetinha com o dedo ao Yon por baixo das
cobertas e o Muu por cima, encolhidinho. Ele tenta atrair a atenção de Muu,
oferecendo guloseimas, no que acaba atraindo também o Yon, mas quando ambos
terminam de comer, voltam para o lado da esposa. É um comportamento bem típico
dos gatos, que não se deixam conquistar por simples migalhas.
Ao contrário de muitos mangás que possuem gatos como
temática central, a arte de Cat Diary é muito detalhada e uma dramatização na
reação dos felinos e suas expressões que se encaixa perfeitamente com a
proposta. Chika Umino também dá representividade de uma forma graciosa às
expressões dos gatos em seu mangá, 3-gatsu
no Lion, mas aqui nos temos mais dramaticidade niilista em cenas triviais
como a do Yon se retorcendo todo e se lambendo, ou se esforçando pra fazer coco
com o J. o observando, ou, o fedor que paira no ar depois que eles fazem suas
necessidades na caixinha de areia, impregnando o ambiente ou simplesmente
achando seus donos verdadeiros loucos por agirem daquela forma [lembrando que a
competição entre J. e A-ko é acirrada].
Muito do humor reside na disparidade entre a arte e o tom da
história. A arte de Ito não se altera pelo plot da história ser outro. Mesmo os
maneirismos de seus personagens continuam iguais. O olhar de desconfiança de
seu protagonista, a forma cautelosa com que sobe a escada, a paranóia que paira
no ar, como se este estivesse diante de algo realmente macabro ou prestes a se
deparar com a morte. Você já viu isso antes. A diferença está no feeling. O
leitor é colocado desde o inicio em um ambiente seguro e as atitudes de J.,
acaba sendo encarado como algo estranhamente ridículo. Nos extras, Ito comenta
que sua esposa odiou a forma como ele a representou, onde na maioria das vezes
ela é desenhada de forma bizarramente macabra, sem a íris dos olhos e com uma
expressão flagrante de trollface. Mas
ele não perdoa nem a si mesmo. E é essa dissonância entre roteiro e arte, que
realmente torna essa história algo repleto de histeria nervosa, com a figura de
Junji Ito e sua esposa sendo representado como caricaturas, mas ao mesmo tempo
mantendo-se o tom realístico dos acontecimentos reais. E o melhor, possui a
duração ideal que este tipo de obra pede, parando antes que se torna repetitivo
e deixando um gostinho doce na boca.
O diário de Junji Ito
O nome real da A-ko é Ishiguro Ayako (石黒亜矢子),
eles se casaram em 2006 e hoje têm duas filhas; Nonoko e Nanao.
Nascida em 1963, Ayako também é ilustradora, tendo
contribuído com ilustrações para as light novels de mistério/suspense/horror do
famoso escritor Natsuhiko Kyogoku [o premiado Moryo no Hako é o seu mais conhecido trabalho por aqui, tendo sido
adaptado para anime com ilustrações do grupo CLAMP e animação do estúdio Madhouse
– Ele teve outro trabalho adaptado para anime, o horror/mistério Requiem from the Darkness, mas sem
muita repercussão]. Ito explica nos extras que ensinou ela e sua mãe a
aplicarem reticulas e que elas acabaram se tornando melhores do que ele nesta
função, este que por sua vez diz nunca conseguir aplicar o tom certo. O
casamento entre eles lhes rendeu diversas brincadeiras em blogs japoneses, como
“o casamento do Sr. e da Sr. medo”.
Se justifica. Como se nota, Ayako tem um apelo enorme por gatos e transporta
isso para suas ilustrações, quase sempre sobrenaturais e com uma áurea meio
macabra pairando no ar.
Abaixo, algumas imagens do acervo de Ayako [imagens ampliáveis]
Uma das filhas do Ito, Yon recebendo chupetinha de Ayako, Muu recebendo um cafuné. O triste disso tudo é que o Yon da vida real já se encontra morto.
Os japoneses são conhecidos pelo grande carinho que nutrem pelos gatos, que são considerados “espíritos sábios” e portadores de boa sorte desde tempos antigos. Há muitas lendas e histórias que retratam o heroísmo dos gatos e que tornaram Maneki-neko [gatos da fortuna], um símbolo respeitado e até mesmo sagrado naquele país.
Durante os tempos antigos, os cães foram utilizados
exclusivamente para a caça e para proteger as famílias, enquanto os gatos eram
mantidos como caçadores de ratos. Mas isso foi mudando quando os japoneses
começaram a valorizar animais de estimação como parte e membros da própria
família. Atualmente, segundo o Japan Pet Food Association (JPFA), um pouco mais de 18% dos domicílios japoneses possuem seu
animal de estimação, média que vem subindo junto com o crescimento populacional
da ilha japonesa. Se em 1994, de acordo com a JPFA, havia 9,1 milhões de cães e
6,2 milhões de gatos no país, em 2009
a taxa era de 12,3 milhões de cães e 10 milhões de
gatos.
Esse apego aos animais, muito se deve também pela forma
individualista do japonês [embora ajam em coletivismo, a vida pessoal de cada
um é bastante resguardada. O que torna bem comum descobrirem corpos de idosos
em suas casas, anos e anos após a sua morte], que encontra nestes animais, um
alvo perfeito para depositarem seu afeto. Porém, ter animais de estimação pode
ser um problema devido à vizinhança que não permitem animais.
O que tornou o Japanese cat café, um Gato Café (!) ao
estilo do Maid Café [onde garotas
vestidas de empregadas servem seus “patrõezinhos”] e derivados do mesmo, um
tipo de estabelecimento bem comum por lá. O preço para tomar um café e passar
um tempo ao lado dessas criaturinhas tão lindas é salgadinho, mas quem disse
que há quem se importe em pagar? Há inclusive aluguel de gatos! Tem uma lenda popular japonesa que diz que os gatos se tornam mais populares por lá toda vez que há recessão no país. Se é verdade ou não, o fato é que eles têm se tornado cada vez mais populares. Algo sobre orelhas pontudas e patas pequenas terem um efeito calmante sobre a mente humana. Ou a cultura tradicional japonesa de forçar as pessoas se comportarem como rebanhos de ovelhas e agir adequadamente. Como seres independentes e amantes da liberdade, se tornam o alvo ideal da obsessão humana. Pelo menos aqui, travo um luta diária com o meu gato sapeca.
Já o apreço de mangakás por gatos, é explicável. Afinal,
gatos são criaturas independentes e embora exijam carinho de seus donos, você
não precisa se preocupar em levá-los para passear e nem dedicar algumas horas
para brincar com eles. Quando eles querem carinho, simplesmente vêem até você e
se acomodam do seu lado. Se você tem um pequeno
apartamento, gatos certamente são a escolha mais obvia. Mangakás são
profissionais solitários, mal pagos se este não tem um grande nome e não vende
bastante. A pressão é enorme, o que levam alguns a cometerem suicídio. Mas este já é outro assunto.
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Destaque: A arte. Junji Ito Está sensacional em Cat Diary.
Autor: Junji Ito
Ano: 2008
Volumes: 01
Editora: Kodansha
Revista: Magazine Z
Demografia: Seinen
Onde encontrar: Chrono