Você vai ler muito a palavra distopia aqui.
Este artigo é meio obvio, mas enquanto escrevia o anterior,
realmente fiquei com muita, muita vontade de falar sobre, principalmente por me
deparar com muitas criticas ingênuas e infundadas sobre Psycho-Pass, como por
exemplo, ser inconclusivo e não dar muitas respostas. Claro, gostar ou não, é
inerente a cada individuo, eu mesma queria muitas coisas que não aconteceram. Apenas listarei 5 pontos que não são exatamente um erro.
Também não farei comentários críticos sobre a série e suas possíveis falhas, porque não é o
tópico. Há! Espertinha! E lembre-se, caso algo que eu disse aqui entre em conflito com o que comentei nos posts semanais da série, é porque agora com a obra encerrada eu tenho uma visão privilegiada e devidamente digerida.
-Não me responsabilizo
por possíveis spoilers presentes no texto. Leia por conta e risco.
01)A Origem
É comumente que distopias geralmente possuam um motivo para
terem ocorrido. Uma guerra e um país que se levanta sobre os destroços da
mesma, golpe/crise politica, superpopulação, um apocalipse, etc. Também é típico
que a história se desenvolva no futuro.
No entanto, da mesma forma que nem toda história distópica se desenvolva no futuro – como é o caso do romance Never Let Me Go de Kazuo Ishiguro que se passa na década de 80 – , nem sempre há uma explicação para o seu surgimento. Nineteen Eighty-Four, mais conhecido como 1984, de George Orwell, é um bom exemplo de romance que não explica como o mundo se dividiu em Eurásia, Estásia e Oceania, se limitando ao funcionamento do sistema. Orwell só deixa implícito que em algum momento o partido opressor assumiu o poder e desde então controla o estado. Em Psycho-Pass, Gen Urobuchi não explica com exatidão o que originou aquele sistema, apenas deixa implícito que em algum momento ele surgiu e foi aprovado pela maioria da população da época. Da mesma forma, fica subtendido o porquê na origem apocalíptica daquele novo modelo social.
Decisões extremas para situações extremistas. Enquanto humilhada,
Hitler se aproveitou da crise econômica e politica para ascender ao poder na
Alemanha. Uma década antes do surgimento de Hittler, o fascismo italiano de
Mussolini encontrou uma brecha no sentimento geral de medo e ansiedade dentro
da classe média do pós-guerra, relacionado à economia, politica e convergência cultural.
Já no Brasil, o medo e a descrença levaram a população a pedir a intervenção do
exercito.
Dessa forma, muitas vezes explicar o contexto desta origem detalhadamente
se torna redundante, caso ele não influa diretamente no conflito da trama
atual. Em Psycho-Pass, o sistema é regido pela secretaria de segurança, que não
precisa prestar contas a nenhum outro poder, além de ser quase que
completamente automatizada e administrada com Inteligência Artificial.
2) O Héroi/Questionador
Enquanto na utopia geralmente o protagonista é alguém de
fora, na distopia tende a ser alguém de dentro do sistema. O protagonista é
aquele que questiona a sociedade por sentir que há algo de errado naquele
modelo, tentando fazer algo para reverter isto. Muitas vezes suas visões não
batem de frente com outros membros daquela sociedade, evidenciando que a
fronteira entre utopia e distopia é formada de opiniões.
“Você não pode fazer um omelete sem quebrar os ovos, é o que ele diz.
Nós achamos que poderíamos fazer melhor. Melhor? Eu digo, com uma vozinha. Como
ele pode pensar que isso é melhor? Melhor nem sempre significa melhor para todo
mundo, ele diz. Sempre significa pior para alguns”. – The Handmaid's
Tale
Novamente, há muitas formas de se fazer isso, em Brave New
World (Admirável Mundo Novo) de Aldous
Huxley o herói é alguém de fora, apesar de que isto tirou muito do impacto. Por
isso, todos que acompanhamos Psycho-Pass erramos quando achamos que os membros
da elite militar da série iriam se voltar contra o sistema e combate-lo.
Urobuchi prefere seguir por outro caminho, utilizando elementos da filosofia com influência mais direta no roteiro,
como a metáfora do mito da caverna de Platão – prisioneiros desde o nascimento
acorrentados no interior de uma caverna de modo que olhem somente para uma
parede iluminada por uma fogueira. Ela ilumina um palco onde estátuas dos seres
como; homem, planta, animais etc. são manipuladas, mas eles não sentem, porque
as sombras das estátuas projetadas na parede são a única imagem que aqueles
prisioneiros conseguem enxergar.
Urobuchi constrói um teatro de gato e rato (Kougami Shinya VS Makishima Shougo) através de uma narrativa policialesca, entre bandido e mocinho, sendo os crimes cometidos, provocações que tentam desmascarar o sistema. Tudo isso interligados por uma teia de relações que levam a Makishima Shoujo, antagonista da série. Embora todas as predefinições, na distopia o importante é o personagem que questiona. Essa característica dada por Urobuchi a narrativa é conhecido como a entidade diabólica sem a qual o pensamento não seria possível, aquela que provoca e instiga ao questionamento, algo presente inclusive em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Obviado, o estado tenta evitar que a sociedade tenha acesso a esta entidade, que pode ser um personagem ou elementos da cultura pop, como a música e a literatura. Também pode ser ambos, pois sua ligação é intrínseca.
Em última analise, Makishima faz parte do arquétipo do
gênero, em que o questionador é de uma classe social alta, que consegue ver
tudo que está errado no sistema por ter acesso a um conhecimento proibido, tentando
destruir a máquina, sem muito sucesso. Kougami é seu coadjuvante (que faz a escada), enquanto Akane sua antítese.
Este triângulo representa as três vertentes da série: A fachada policialesca, o
conflito moral e a filosofia.
Vale frisar na a antítese Akane X Shougo, característica definidora
das principais características destes personagens.
03) O Plot/Conflito
Em essência o conflito do enredo está comentado logo acima. Histórias
distópicas tendem a girar em torno de personagens que questionam o sistema, a
tentativa de derrubá-lo, assim como a resistência estabelecida. Em Psycho-Pass,
nós temos os agentes manipulados/ou coagidos pelo sistema, que caçam aqueles
que se opõe a ele.
Uma característica interessante da distopia é o fato delas
serem baseadas em coisas que já aconteceram ou acontecem no mundo contemporâneo.
Estes sistemas, sendo eles ficcionais ou verídicos, se sustentam em cima do
medo, a sua arma mais poderosa. E claro, a ignorância e alienação.
04) Desfecho/Clímax
Maaaaaaais uma vez, geralmente
as histórias neste gênero não são resolvidas, independente se o personagem
questionador morre ou não, escapando ou não, ele conseguindo ou não destruir o
sistema. Claro, não é uma regra, certamente existem histórias que narram sua
queda, mas eu nunca li nenhum romance ou assisti um filme em que isto
acontecesse. Não é uma pratica popular e geralmente está atrelado à ficção apocalíptica,
em que a narrativa já começa após a derrubada deste sistema, narrando a anomia,
afinal, o que mais fascina no pós-apocalíptico
é o caos e o desespero das pessoas para sobreviver, a dificuldade que se
encontra no após, não uma escrita
politica e filosófica.
Como acontece em Psycho-Pass, mais especificamente ao termino deste, na narrativa distópica os personagens insatisfeitos se rebelam, mas não conseguem alterar nada efetivamente com relação ao sistema adotado, e muitas vezes eles precisam mudar para se adaptar às regras impostas, socialmente ou no seu nicho. Por exemplo, a Akane, ao contrário de muitos personagens ao decorrer dos episódios [como Yayoi, Kagari, Mika que acabou se tornando agente, a estudante que sofria abusos sexuais do padrasto e a amiga de Akane que por seu baixo padrão neurológico de aptidão recebeu poucas indicações de emprego], inicialmente não se choca com nenhum tipo de conflito com o sistema por ter um psycho-pass estável e uma família super protetora mantendo-a numa redoma. Isso é caracterizado por seu físico frágil e temperamento dócil. No entanto, ao entrar em contato com a nova profissão, precisa ajustar seus valores morais às normas estabelecidas pelo sistema. Como em 1984, entre outros, isso leva à desesperança e ao conflito.
Cyberpunk e narrativas distópicas são pessimistas e melancólicas
por natureza, faz parte de sua essência questionadora. Seu objetivo é ilustrar
o lado negativo de aspectos de nossa cultura, denunciando tudo aquilo que extrapola
os limites, como a tecnologia.
Particularmente, os vejo como o lado sombrio da ficção cientifica. A principal característica da distopia é a crítica, às vezes velada e outras vezes bem direta ao ponto, às nossas próprias sociedades, ao funcionamento do nosso mundo. O assustador é o fato de na maioria das vezes vermos o quão perto estamos de ficarmos iguais ao que é retratado nestes livros e séries, em termos negativos. As distopias fazem-nos pensar, refletir sobre questões de fundo enquanto passamos um pouco de tempo perdidos nos meandros de uma história em primeiro plano.
Em Fahrenheit 451 a descrição de escola que Bradbury faz é assustadoramente
similar aos modelos contemporâneos, em Admirável Mundo Novo a critica se tornou
realidade no mundo atual com a memória 2.0 proliferada nos anos 2000. Atribui-se
à ficção cientifica o papel de antever, e de fato, muito dos temas abordados a
40, 80 e 100 anos atrás hoje são discussões atuais como aquecimento global,
drogas, questões filosóficas, espirituais e tecnológicas.
05) “Inconclusivo”
Dessa forma, concluir a trama sem dá-la um senso de
continuidade, corre-se o risco de data-la e desvinculá-la da proposta inicial;
um entretenimento reflexivo. Apesar da característica pessimista, há lugar para
um fio de esperança em obras distópicas. Na versão cinematográfica do romance
de Philip K. Dick, Blade Runner, o fio de esperança se dá através de um unicórnio.
Para muitos, um unicórnio é tão plausível quanto a existência de um ser superior
invisível, mas ele simboliza a aliança e seu chifre é a metáfora da integração
entre os lados direitos e esquerdos do cérebro, representando a conjunção da mística
com a ciência, razão e intuição, o surgimento de um novo paradigma tentando
compreender a complexidade da vida. É a forma que o diretor encontrou para dar
o “final feliz” que os produtores exigiram na época.
Em Psycho-Pass, o fio de esperança se dá através da
renovação cíclica e o aprendizado que só é possível alcançar através das
experiências vividas, tal como, o legado que você leva de cada um com o qual
interagiu (atente para como Kougami leva
muito de Shougo, como Akane leva muito de Kougami e assim por diante
progressivamente em todo o núcleo de personagens; um levando um pouco do outro
ou sendo afetado indiretamente, fazendo com que mudem seus paradigmas,
anteriormente inabaláveis).
Por último, Pyscho-Pass parte do pressuposto de que mudanças
levam tempo, gerações, para que então sejam sentidas num âmbito social e
politico. E que isso só é possível com o despertar, com o sujeito abandonando
um estado de alienação e se tornando ativo socialmente. Akane estava
completamente submersa e alienada ao modus operandi do sistema, quando então se
choca contra ele e aprende que para muda-lo, para o bem da sociedade, antes
será necessário se integrar a ele. O que na minha opinião particular, não passa
de uma metáfora politica (precisa explica-la?).
Enquanto isso o cenário se divide entre quem é alheio ao conhecimento e os
indiferentes que tomam pílulas pop para esquecer. Com Psycho-Pass, Gen Urobuchi
construiu uma alegoria que critica a atual sociedade japonesa e a crise pela
qual está passando: O envelhecimento da população, a baixa natalidade, e a
indiferença dos que importam para o futuro (os
jovens), e a decadência politica do estado. É uma analise simplista, eu
sei, sua elaboração é assunto para outro artigo. Ou não.
Mesmo estando fechadinho, apreciaria uma segunda temporada,
ainda que vazia de sentidos ;)