Este filme representa o meu primeiro contato com o vasto universo criado pelo prolífico Shotaro Ishinomori (1938-1998), que em questões de popularidade, fica restrito aos fãs mais hardcores, mas é tão importante para o cenário japonês, como o foi Osamu Tezuka. O cara que mudou a visão de como se enxergava tokusatasus, influenciando todo um gênero, é mais alardeado por estas bandas por sua parceria com o estúdio Toei Animation na criação do icônico Black Kamer Rider, mas entre sua opera omnia, para os mangás e animes o seu clássico sci-fi Cyborg 009 é sem dúvida a obra mais importante, sendo o equivalente japonês para os X-Men em termos de enorme influência sobre as gerações futuras. Não deixa de ser curioso ver grandes pilares da indústria como Go Nagai e Katsuhiro Otomo, tendo as obras de Ishinomori como suas inspirações na criação de clássicos.
Mas bem, e o filme? Não faz justiça. Mesmo. E ainda assim é um bom cartão de apresentação e um entretenimento marginal que sabe entreter.
A série original é datada de 1964, com seres humanos de diferentes partes do mundo que são seqüestrados e transformados em ciborgues, ganhando poderes surpreendentes com a finalidade de serem usados como armas. Mas eles se voltam contra seus criadores para lutarem em nome da justiça, restaurando a paz no mundo, então desaparecendo das páginas de história e das memórias das pessoas. É um mangá extenso pra caramba, 36 volumes, diversas adaptações e, sendo que duas dessas chegaram a passar no Brasil ainda na época da extinta TV Tupi (quem não é velho o suficiente, ou não conhece a teledramaturgia brasileira, não fará nem idéia do que se trata). Agora, Kenji Kamiyama responsável pela direção e pelo roteiro, resolveu atualizar a obra para o público atual, pegando vários pontos de diversas tramas criadas por Ishinomori e a partir daí tecendo um novo e ambicioso argumento. Ele pega diversos questionamentos dos ciborgues introduzidos pelo autor do mangá, sobre justiça e paz, mas que, segundo Kamiyama, nunca foram levados adiante e então cria um roteiro se passando anos no futuro, com as lembranças desses ciborgues já dissipadas no imaginário popular.
Então, nós somos apresentados a um universo post 9/11 (aquele terrível atentado às Torres Gêmeas nos EUA), com Kamiyama utilizando exatamente esta vertente como catalisador do argumento: vários atentados a partir de então a grandes edifícios do mundo inteiro por ataques terroristas que ameaçam imergir o mundo novamente numa nova espécie de Guerra Fria. É então, que os ciborgues são chamados novamente à ativa. Conforme investigam, descobrem que os atentados terroristas foram provocados por uma entidade misteriosa em forma de loli yellow hair chamada por “Sua Voz”, que aparece misteriosamente em diversos pontos do planeta e sussurra para que pessoas cometam atentados. Se trata de uma entidade bíblica que pode ser Deus ou apenas algo implantado no cérebro de cada pessoa ao longo dos séculos por seitas religiosas? Como lutar com um inimigo invisível?
Yep. Este é o ponto do longa metragem do Kamiyama.
009 Re:Cyborg se divide em três vertentes; ser um filme político, roteiro sério flertando do inicio ao fim com o existencialismo, e entretenimento blockbuster (leia-se, toneladas de sequências de ação e uso de todos os clichês inerentes ao gênero). O americano Bleeding Cool registra uma declaração de Kamiyama, onde fica evidente sua critica ao capitalismo (“E se Deus dissesse para destruir o capitalismo?”). Ao site do estúdio Production I.G., ele diz que tirou os elementos fantasiosos originais de uma trama do qual se inspirou (em que os personagens questionam o que é justiça e paz), para dar mais seriedade ao enredo, no entanto, o resultado é apenas pretensioso e confuso, se perdendo em discussões teológicas amadoras [sem qualquer aprofundamento], vomitando referências à Freud na tentativa de soar profundo. Mas é ao tentar parecer lógico sobre o conceito de Deus por trás daquelas ações que o roteiro se torna ainda mais lamentável, como um adolescente com ejaculação precoce ao falhar diante da garota de seus sonhos. Falo isso porque Kamiyama é conhecido por ser discípulo de Mamoru Oishii, inclusive ele é um dos principais nomes da franquia Ghost in the Sheel, outra produção do Production I.G..
Em 009 Re:Cyborg, porém, nada disto funciona por ele transformar a temática num amalgama impreciso. O típico desfecho de obras existenciais de terminarem de forma vaga, não tem o efeito esperado aqui, refletindo o vazio da linha de pensamento do enredo. Oishii consegue alinhar bem a temática sci-fi e fantasia por não ter medo de limitar sua história à um publico restrito, tirando parte significativa do apelo mainstream (em The Sky Crawlers, por exemplo, ele retira todos os elementos sci-fi da obra original e se foca apenas nas questões existenciais, mostrando um bom domínio da mídia), já Kamiyama ao mesmo tempo que deseja afastar a fantasia para construir um mundo o mais verossímil possível, mas com todos os ingredientes comuns de um filme de super heróis, precisará justamente da fantasia para passar a sua mensagem final. Talvez fosse mais importante se pudéssemos saber o porque Deus se apresenta como uma garotinha yellow hair. De muitas maneiras isto me lembra a trama da trilogia do Batman de Nolan, onde uma Seita sempre varre uma cidade do mapa quando esta atinge um nível irreversível de podridão. Então eles vão, e derrubam tudo e todos. Porém, por mais absurdo que possa parecer, Nolan foi honesto com o próprio mundo que criou.
O desmemoriado Joe Shimamura é o ciborgue 009 que dá nome ao filme, que até então se misturava em meio à sociedade até chegar um momento em que ele fosse necessário para o mundo novamente. Do momento em que o acompanhamos desmemoriado, com um olhar angustiante e vazio ao ser acolhido por sua enamorada colega de classe, até o ponto em que tudo começa a implodir e suas memórias vêm à tona ao resgatar a sexy ciborgue 003 com lingerie provocante que se joga arbitrariamente de um avião; o roteiro consegue tragar sua atenção despertando emoções mistas. Se inicialmente tudo parece um enorme quebra cabeça com as peças fora de ordem, com você sendo atraído pela figura enigmática e taciturna de Joe, por outro está vibrando com uma série de eventos acontecendo simultaneamente, onde inesperadamente tudo começa a fazer sentido.
Outro destaque é o modo como Kamiyama conecta as referências da história clássica para o novo espectador sem qualquer conhecimento anterior da série, como também a enorme quantidade de personagens. Em determinado momento, temos dois personagens em diálogos conspiratórios, que são trabalhados em linhas distintas do enredo. Sente-se a obvia inquietude de que aquelas tramas distintas talvez sejam muito maiores do que está sendo mostrado, nem ao menos dá pra entender exatamente qual a motivação desses personagens, mas ao fim, todas as tramas se conectam tão bem, que as esparsas aparições desses personagens agindo aleatoriamente, se justificam dentro do enredo. Outra boa sacada de Kamiyama é centrar o enredo unicamente nos ciborgues e relegar personagens secundários a um mínimo screentime. O romance entre Joe e Françoise, além de adicionar uma camada mais quente ao enredo, seu envolvimento naquele curto período se mostra natural, é como uma explosão de sentimentos contidos por décadas. Dessa forma, a paixão é representa em seu melhor: carnal e compulsiva, ainda que para os padrões ocidentais isto se mostre bem light.
Obviamente, o Japão quando se trata de técnicas 3D, suas produções são muito baratas se comparadas às americanas (mesmo quando tudo vai bem), no entanto, ainda que os movimentos soem travados e sem boa fluidez de movimentações e de trejeitos mais detalhados (como a cena dos policiais nos primeiros minutos do filme, ao revistarem Joe), de um ponto vista geral não compromete tanto. E mais, 009 Re:Cyborg faz uso da tecnologia cel-shaded 3D de um modo que é notável em games, mas que eu nunca vi sendo bem aplicado organicamente em animes integralmente, nem mesmo em animações americanas – os novos longas de Berserk utiliza a mesma tecnologia, mas sem carpintaria alguma, o que talvez pode ser fruto de uma produção que precisou ser feita às pressas, mas um estúdio como o Production I.G. que é conhecido como o melhor na integração de animação tradicional com CG pode ter sido fundamental. O cel-shaded 3D dá a a falsa impressão de ser algo desenhado à mão, e ainda que seja uma técnica limitada, Kamiyama nos mostra uma direção que sabe atingir o espectador com cenas de ação explosivas e bem coreografadas (ajudou muito o fato da ação ocorrer por turnos, balanceando bem os diálogos com as sequências de tirar o fôlego), com bons planos fotográficos do cenário. O uso de cores é impressionante e os efeitos para cada um dos poderes dos ciborgues consegue dar impacto visual, tendo em vista o que tinham em mãos [como por exemplo, a capacidade de desaceleração do ciborgue 009, ou o frenético embate entre ele e o ciborgue 005 em cima de um prédio, aquilo foi alucinante!].
Com um design refinado e 3D eficaz, o que mais poderia faltar? Tecnicamente, nada, porque a trilha sonora composta pelo honorável oyaji-san Kenji Kawai torna as sequências de diversos momentos ainda mais envolventes. É daquelas que mesmo após o fim, ainda conseguem ressoar em você por um bom tempo, convidativas.
Algo que será inevitável, é a comparação com os X-Men, principalmente porque Ishinomori desenvolve um Multinational Team, que são equipes com personagens de diversas nacionalidades. Até acredito que ele possa ter se inspirado nos X-Men, que surgira 1 ano antes (em 1963), mas a equipe era formada apenas por jovens americanos, de qualquer forma seus personagens são mais estereotipados, e a despeito disto se mostram cativantes no curto período de tempo que são expostos. Todos os ciborgues são análogos dos personagens da série americana, o que não deixa de ser curioso.
Entre seus interpretes, há figurinhas muito conhecidas como Chiwa Saito (Cyborg 003 / Françoise Arnoul), Mamoru Miyano (Cyborg 009 / Joe Shimamura), Daisuke Ono (Cyborg 002 / Jet Link), entre outros, e seus desempenhos são excelentes. Pra terminar, 009 Re:Cyborg é um filme que realmente vale a pipoca, oferecendo o final baunilha que as audiências tanto apreciam, mas que infelizmente esquecível. Apesar disso, fiquei surpresa, não achei que pudesse gostar tanto. Se fosse uma exibição numa sala de cinema, eu teria saído com um sorriso no rosto, ver todos enfim vestindo o uniforme, me deixou uma ótima sensação. 009 Re:Cyborg é isto, um filme de super heróis e sua complexidade deveria se trabalhada na simplicidade (“Quando é que deixamos de ser os mocinhos?”), qualquer outra tentativa aqui é apenas abominável ao tentar ser uma leitura definitiva para algo que nem mesmo o autor original ousou escavar mais.
Nota: 06/10
Ano: 2012
Direção: Kenji Kamiyama
Roteiro: Kenji Kamiyama
Estudio: Production I.G, SANZIGEN Animation Studio
Tipo: Filme
Duração: 103 min.
Post patrocinado por
Curta o Elfen Lied Brasil no Facebook
e nos Siga no Twitter
REVIEW, resenha, análise, crítica, estudo, 009 Re:Cyborg (2012), remake anime filme, Shotaro Ishinomori, Cyborg 009