segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Revisitando Tokyo Godfathers (2003) – Um Milagre De Natal

Todo final de ano surgem aquelas listas com animes que contém episódios natalinos e nas primeiras posições você sempre verá a presença de Tokyo Godfathers (Padrinhos de Tokyo). 
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Na noite de 24 de Dezembro, três sem tetos; o alcoólatra de meia idade Gin (Emori Toru); a ex-drag queen e travesti Hana (Umegaki Yoshiaki); e a adolescente fugida de casa Miyuki (OkamotoAya), encontram um bebê abandonado, como se os céus atendessem às preces maternais de Hana, que pouco antes, discutia fervorosamente com Gin sua vontade de ser mãe e as infinitas possibilidades de um milagre de natal. Gin e Miyuki querem entregar o bebê à polícia, mas Hana apela para seus instintos maternais e convence os companheiros a procurarem os pais da garotinha agora batizada como “Kyouko” e perguntarem o motivo do abandono. Claro que a investigação não seria fácil. Inicia-se então uma série de coincidências improváveis que os guia por um caminho tortuoso até o paradeiro dos pais da pequena Kyouko.

Tokyo Godfathers é um filme atípico de natal. Satoshi Kon compõe uma visão pragmática do tema, onde os moradores de rua estão pouco interessados nos valores simbólicos da data e nos sermões religiosos, suportando-os tão somente porque são um meio de obterem a comida oferecida pelas instituições de caridade. Afinal, eles têm preocupações muito maiores do que se preocupar com o sentido religioso da data. 
A bem da verdade, japoneses em geral não comemoram o natal da mesma forma que nós, ou seja, como uma festa religiosa. Lá é meramente uma data comercial, em uma festividade que perdura até o ultimo dia do ano, data onde eles fazem a entrega dos presentes. Tokyo Godfathers é culturalmente a melhor representação do natal no Japão.

O filme começa na noite de natal e termina com todos os eventos culminados no último dia do ano, em que metaforicamente, todos os presentes são entregues.

Papai Noel, fada madrinha, anjos; são todas figuras presentes durante o filme, que são usados mais como elementos para estabelecer o realismo do mundo real do que necessariamente fazer uma ode à fantasia. De todos os filmes de Kon, Tokyo Godfathers é o mais realista no modo como compõe os personagens e o ambiente. Isto parece estranho numa obra que se utiliza de uma série de coincidências e deus ex-machina para funcionar? Na verdade não e isto prova o talento de Kon como cineasta, fazendo uma composição homogênea entre o realismo e a fantasia.

Ele parte do principio básico de que não importa o quão fantasioso e inverossímil seja os mecanismos utilizados numa ação fantasiosa, mas preservar um elemento familiar que se aproxime da realidade nas motivações dos personagens. Gin, Hana e Miyuki podem se meter em ações repletas de heroísmo que soam tão improváveis quanto um avião se transformando em um robô em pleno ar, mas suas motivações tornam estas ações algo tão pungente quanto à dor provocada por um respingo de gordura quente sobre a pele. Às vezes impulsionados por suas tentativas de escapar do próprio passado e outras vezes motivados por ele, Gin, Hana e Miyuki são memoráveis em todos os traços de personalidades que o tornam tão complexos e  humanos, que poderia ser eu, você, ou algum mendigo que cruzamos na rua e fazemos questão de desviar o olhar – por este ou aquele motivo.

Hana: "Não quero que ela passe de um orfanato a outro sem nem sequer uma lembrança de ter sido amada"

Miyuki: "Não precisa ter sido abandonada para se sentir assim"
Os personagens e o próprio mundo construído por Kon aludem ao mundo real e a problemas contemporâneos que enfrentamos – ou fugimos – em nossa dia-a-dia. Em extras e entrevistas, Kon reitera o que nos é obvio: a sua motivação em tecer uma narrativa com comentários sociais – incluindo os dois maiores problemas que o Japão enfrenta que é com relação à desestruturação e enfraquecimento dos laços familiares e, segundo ele na época, a violência de jovens de classe média contra moradores de rua; numa excelente cena onde Gin apanha e Kon consegue tornar palpável a gravidade daqueles atos, retirando a trilha sonora e todos os elementos que pudessem remeter a algo fantasioso na sequência.

Imigrantes ilegais em mercado negro, desemprego, exclusão e fracasso social, pessoas invisíveis aos olhos da sociedade; Tokyo Godfathers desenvolve um ambíguo recorte social. Essa vertente sócio social com proposta reflexiva levantada por Kon numa obra com uma narrativa mais leve não deixa de ter um quê desafiador, uma vez que aqui se encontram elementos bastante dissonantes. Mas na perspectiva dele, não deve representar nenhum risco tamanha segurança que demonstra. Por exemplo, ele utiliza de paletas de cores e mudanças na animação para definir o tom em cenas dramáticas e de humor pastelão. As sequências mais introspectivas seguem com uma direção mais sutil.

Um bom exemplo nas cenas exageradas está na mudança brusca na animação, que abandona o estilo tradicional e realístico, para deformações faciais mais cartunescas. Inversamente, destaca com grande ênfase o lado realístico da cidade, através das texturas; cartazes rasgados na parede, edifícios, guetos escuros, etc. É interessante o contraste que se estabelece no caminho trilhado pelos personagens através da cidade entre o underground de Tokyo e o seu cartão postal. 
Com muitas voltas, reviravoltas e coincidências, Tokyo Godfathers se desenvolve em um continuo encadeamento de situações até fechar o círculo narrativo dos três personagens e a relação entre eles mesmos e o passado que queriam abandonar, mas que insiste em emergir. O ótimo roteiro de Kon e Keiko Nobumoto (também roteirista principal em Cowboy Bebop, Wolf's Rain, Macross Plus) se torna uma verdadeira cama de gato onde tudo está relacionado e interligado.

Um pequeno exemplo está na construção visual de algumas sequências. Em determinada cena há rastro de sangue escorrendo pelo cano, que leva a um flasback onde uma garota acabara de esfaquear o próprio pai. O flashback se transforma em um delirante quadro surrealista onde as lembranças da mente da garota se embaralham e a realidade e fantasia interagem formando uma nova sequência onde em outro ponto da cidade. Um personagem ligado a ela começa a alucinar que está vendo diante de si um anjo, porém, em outra tomada, é mostrado que na verdade se tratava de uma drag queem fantasiada de anjo. Nesta cena, os personagens voltam a se reencontrarem em mais uma improvável coincidência. 
São rimas visuais extremamente divertidas e uma característica do Kon em todas as suas obras: sua edição é dinâmica e os movimentos de câmera constantes. Elementos reais se transformam em elementos quase fantásticos, mas sempre explicados pela logica cientifica do cérebro em colapso, em uma divertida desorientação. Aliás, característica esta que eu mais gosto em suas obras. Quem quiser entender a diferença e o peso que um diretor autoral mantém sobre uma obra ao imprimir sua assinatura, é só dar uma olhada em sua cinegrafia.

Profundo admirar e conhecedor de cinema, Kon não se resigna apenas a comentários sociais em suas obras, como também referencia ao próprio cinema e também à suas próprias produções. Em Paprika, Millennium Actress e Perfect Blue esta raiz é mais forte e facilmente reconhecível, mas Tokyo Godfathers também o faz. A inspiração do título e protótipo temático, por exemplo, vem do western de John Ford chamado Three Godfathers, onde três perigosos ladrões procurados pela policia se veem às voltas com um bebê e a missão de leva-lo em segurança ao lar. 
cartazes de seus filmes ao fundo
E Tokyo Godfathers também não deixa de trazer a marca registrada do cineasta, que é a personagem feminina psicologicamente esgotada e suas alucinações onde delírios fantasiosos se misturam à realidade.

Com diversas referências a anjos – que de uma forma ou de outra as figuras relacionadas a este nome sempre exercessem papel de “salvador” para determinado personagem – como uma metáfora para o milagre de natal, Tokyo Godfathers é uma fabula moderna que fala sobre a tolerância numa cidade socialmente miscigenada. O sacrossanto de arquétipo familiar equilibrado e sólido é rompido aqui por uma família improvisada, transgredindo as leis sexuais e sanguíneas, fundidos em solidariedades. Como Miyuki que consegue estabelecer contato com uma imigrante latina que não fala sua língua, mas que de alguma forma, elas se compreendem e uma consegue ajudar a outra. Como a neve, tão raro em Tokyo, que vem como um presente e transforma a cidade em um conto de fadas branco e multifacetado açucarando uma realidade fria e sombria. Mas na verdade, o que Kon quis mostrar é que são todos pequenos milagres possíveis e que ocorrem todos os dias anonimamente através da solidariedade ao próximo.

Trívia

Destaque para o tema final, que é da 9ª Sinfonia de Beethoven, Ode à Alegria, com uma reinterpretação inspirada no tema do filme de A Laranja Mecânica, de Wendy Carlos. Ode à Alegria é uma canção que fala sobre a tolerância, da humanidade como uma única irmandade e a consciência de que pertencemos a um mundo só. Nada mais apropriada, certo?

Nota: 09/10
Direção: Satoshi Kon
Roteiro: Keiko Nobumoto
Estúdio: Madhouse
Tipo: Filme
Duração: 92 min.

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