No Anime No Life! Pre-para! que isto ficou longo.
No Game no Life (que
para efeitos práticos abreviamos para NGNL – ou simplesmente NogeNora de Nogemu
Noraifu, se você é um otaco ardoroso), a adaptação em anime da light novel original
de autoria de Yuu Kamiya, que foi bastante festejada e recebida com apreensão
por ocidentais [ou melhor, pelos brasileiros], porque seu autor é de
naturalidade brasuca e conseguiu
realizar o sonho de 6 entre 10 otakus: conseguir vingar como artista no Japão,
terra das oportunidades [mas também de altíssima competitividade] para quem
quer seguir carreira na indústria como desenhista ou autor.
A série conta a história dos inseparáveis irmãos Shiro (Ai Kayano) e Sora (Yoshitsugu Matsuoka), dois
adolescentes hikikomoris (não trabalham,
não estudam, não saem de casa para nada e vivem retidos no ambiente virtual) que
sofrem de fobia social. O único lugar em que se sentem bem, felizes e completos
como ser humano é o ambiente virtual dos games, em que formam uma dupla invencível
denominada Kuuhaku (literalmente “espaço
em branco”, simbolizada por『 』).
Entediado, um deus de um mundo paralelo vê o potencial dos irmãos e os convoca
para este mundo de fantasia em que a guerra fora banida e agora as pessoas, os
reinos e as diversas raças que o habitam resolvem seus problemas jogando. Lá,
Shiro e Sora encontrarão seu caminho se tornando peças fundamentais para a
única raça de humanos daquele mundo, ao mesmo tempo em que se sentem motivados
pelos desafios constantes que surgem pela frente.
É bem obvio do que NGNL se trata. É sobre a fuga da
realidade em um ambiente virtual de fantasia, que se torna um simulacro que
substitui um mundo real fadigoso, opressivo e desinteressante. Basicamente, é
disto que light novels em geral se tratam; um escape que coloca o jovem comum e
mediano num universo agradável com ele sendo o centro deste universo, em que
não mais ele será apenas uma engrenagem no sistema, mas a peça fundamental, com
tudo girando em torno do seu centro. Aqui, a aventura é divertida, colorida, com
as mais diversas garotas que realizam seu fetiche particular (tem a neko, a loli, a servil acéfala e
gostosa, as que transmitem um feeling shoujo-ai, a poderosa geniosa que se
torna dócil com você, que é o mestre), com bons desafios e etc. e etc.
Esse desejo pela transcendência da carne não é novo, ele é
inerente à humanidade e se trata de um tema recorrente do cyberpunk,
especialmente o cyberpunk japonês onde corpos humanos se fundem a maquinas e ao
virtual – é um grande fetiche do japonês e uma das maiores inspirações para a
trilogia Matrix, por exemplo. Mamoru Oshii e Chiaki J. Konaka são alguns dos
autores mais conhecidos sobre este tema na esfera de anime e mangá, suas obras
tendem a usar a tecnologia futurística para propor uma reflexão filosófica acerca
da virtualidade e transcendência. Satoshi Kon também tratou o tema através de
uma ótica bem particular, canalizado em Paprika. Em uma geração caótica e insatisfeita,
matar o corpo para salvar o espirito/a alma se tornou necessário para transcender
a matéria e alcançar uma idealização impossível de se alcançar com “os olhos
abertos”. Nunca estivemos tão imersos no virtual como estamos atualmente, onde
mesmo uma confraternização precisa ser compartilhada neste ambiente virtual. Claro,
é uma questão que traz consigo diversas discussões e controvérsias, que se por
um lado interessa à essência do que é cyberpunk [e related], é pouco aprazível para
uma obra puramente escapista. As séries otakus também abraçam o desejo pela transcendência,
mas sob outro prisma, que é o da salvação (alguns
diriam alienação).
NGNL traduz bem esse espírito e, não sei dizer se é uma
herança do original ou fora incorporado na adaptação, mas a série utiliza isto
como um trunfo ao criar humor através de autorreferências e comportamento
caricatural ao próprio meio. Por exemplo, Sora faz piada sobre as mulheres da
série que aparecem com o seios expostos, mas sem mamilos. Ou: Shiro e Sora
possuem aversão a viver em sociedade e isto se reflete no comportamento deles quando
expostos à insolação do ambiente social (o
contraponto disto é que eles são seres noturnos que vivem submersos na escuridão
do quarto, virando noites a fio jogando, como se fossem morcegos, sem
intervenção ou critica de qualquer figura de autoridade – pais ou sociedade),
eles se retorcem e agonizam, perdendo as forças e sanidade mental. A série não
teme brincar com os fetiches do protagonista otaku (lembrando que essencialmente no Japão, otaku descreve que é
fan[natico] por qualquer coisa, similar ao nosso “nerd”, embora estamos
acostumados a relacionar a palavra otaku à fãs bitolados de animes e magás),
utilizando até mesmo as características de Shiro para satirizar o interesse
otaku por lolicon e incesto.
O irônico nessa brincadeira é que por mais que Shiro e Sora
se comportem como dois irmãos apegados, mas sem tensão sexual explicita entre
eles, há sim um subtexto que insinua que Shiro é a garota principal e por mais
que Sora tenha variadas opções, ela é seu único interesse. Tanto que os dois
não são irmãos de sangue, mas adotivos, o que se torna uma carta na manga do
autor. É obvio que é uma carta que o autor dificilmente irá utilizar
explicitamente (obviamente. Shiro tem
apenas 11 anos, enquanto Sora tem 18), mas que lhe dá liberdade para
utilizar subtextos que insinuem isto e dê margens à fantasias, sem ameaçar o status quo da obra. Ou seja,
é aquela questão de CAMADAS: há quem prefira se restringir no
primeiro plano em que não há nada de concreto que evidencie este interesse
sexual e o seu relacionamento é puro, enquanto há aqueles que se sentem confortáveis em ir além e analisar
signos e metáforas comportamentais que evidência uma tendência do autor, que
pode ser ou não consciente. Eu particularmente gosto deles como dois irmãos, sem qualquer interesse sexual explicito. É uma relação mais bonita e afetuosa.
Este anime também traz uma parceria extremamente benéfica entre
o autor Yuu Kamiya, que inclusive chegou a escrever diretamente o roteiro do
episódio 8, e a staff da produção, comandada pela talentosa Atsuko Ishizuka em
apenas seu segundo anime como diretora (o
primeiro foi o elogiado Sakurasou no Pet na Kanojo). Sua direção é
envolvente, econômica e altamente visual, tornando NGNL, um dos animes que
melhor conseguiram desenvolver uma linguagem dinâmica e significativa através
de ações dos personagens, sem soarem extremamente expositivos. No caso de NGNL
a missão era um pouco mais difícil, pois o enredo abrange muita estratégia e
jogos com uma lógica complicada, mas a direção ágil de Atsuko em combinação com
a economia dos roteiros elaborados por Jukki Hanada (que é homem, :p), não permitiram que o ritmo fosse prejudicado,
tornando didáticas a inevitáveis explicações do funcionamento do jogo e a
estratégia utilizada (o uso de onomatopeias foi uma sacada excelente). Some isto a uma boa pré-produção do estúdio Madhouse e a
envolvida equipe da Atsuko, o que se vê é um anime visualmente bonito com
animação bem fluida (o anime anterior da
Atsuko, animado pelo estúdio J.C. Staff também tinha essa característica, o que
deixou os fãs de Little Busters putos pela discrepância entre os dois, mas muito
além de verba maior, uma produção e equipe melhores fazem uma diferença maior
num anime).
A staff deste anime foi magnifica e principal responsável por
traduzir tão bem a linguagem do original para uma mídia oposta, que não é feita
de palavras, mas de som e imagens (Monogatari é exceção porque é exercício de metalinguagem e Mahouka e sua retorica
cansativa prova que a falta de equilíbrio não é benéfico numa mídia de imagens
em movimentos). Vão dizer que é pelo autor do original ter colaborado. Sim,
também ajudou, mas isto não é o suficiente para sustentar uma boa adaptação,
caso contrário, seria uma prática recorrente. Porém, evidencia comprometimento
e entrega dos envolvidos, algo que faz muita falta à maioria dos animes, em que
seus envolvidos geralmente não se sentem motivados e apenas cumprem tabela (todo mundo tem suas contas para pagar).
O diretor de Jojo 2012 mesmo foi buscar no autor suas impressões e opiniões,
para criar a partir disto um esboço do que viria a ser a série em anime. Por
isso é tão bom observar o desenrolar de NGNL, com suas cores hiper saturadas
que refletem o espirito da série em ser colorida, vibrante e divertida. Não é
pra ser real, e sim fantasioso e divertido, um argumento que estende nas cores
e atmosfera.
Aliás, uma das regras deste mundo paralelo em que Shiro e
Sora se encontram, é se divertirem enquanto joga – esta regra é fundamental naquele
mundo para se alcançar o sucesso. Outro aspecto que chama a atenção e são bem
encaixadinhos, é a percepção satírica do anime em referenciar outras séries de
sucesso, como filmes Ghibli, Jojo Bizarre Adventure e Yu-Gi-Oh. São
referências bem sacadas que são usadas para fazer humor, muitas vezes, quase imperceptível.
Inclusive, esta disposição de colocar o sentimento de
diversão e satisfação acima de tudo, faz parecer que os jogos são superficiais
e incoerentes, induzido ao erro de julgamento. São jogos extremamente coerentes
e lógicos dentro da proposta da obra. É impressionante a capacidade criativa e
a imaginação do autor, que consegue criar estratégias lógicas e, por vezes
complexas, envolvendo um amplo cenário, sem deixar que este se torne
demasiadamente sério. Por exemplo, as estratégias utilizadas pelo Kuuhaku nunca
são com um único objetivo em mente, sempre envolvem consequências lá na frente,
fazendo com que as ações se conectem intrinsecamente. Uma peça mexida aqui, que
você não entende qual o seu proposito, se mostrará fundamental na próxima
etapa. O Kuuuhaku enxerga longe. Entre as estratégias mais complicadas a um
olhar mais superficial, estão a do episódio 08 e 12, que envolvem cálculos –
com ações que afetam diretamente o resultado da estratégia utilizada do
episódio 11 ao 12. Somadas, todas as contas batem certinhas sem qualquer
equivoco, mas exigem uma combinação de resultados improváveis.
Por quê? Porque o ser humano, por mais que haja uma taxa
comportamental padronizada que é altíssima, é capaz de ações imprevisíveis quando
expostos à adrenalina e perigo. Qualquer ação diferente prevista por Shiro de
um adversário no jogo mudaria drasticamente o panorama. Mas é ai que está a
logica do argumento, que você pode comprar ou não: estes adversários nunca agem
inusitadamente fora do padrão (a justificativa encontrada pelo autor está no
fato de menosprezarem os irmãos como jogadores e supervalorizarem suas próprias
habilidades). E principalmente, Shiro e Sora formam uma dupla imbatível.
Ela é um super computador humano no que se refere à cálculos
e porcentagens e ele é extremamente habilidoso em lidar com comportamentos e emoções
humanas, sendo que uma de suas maiores características é a de manipular uma
situação desfavorável à seu favor, utilizando sua capacidade de ler o
comportamento da outra pessoa. Além disso, ambos possuem uma ampla bagagem
cultural, têm a vantagem de virem de um
mundo completamente desconhecido das pessoas daquele mundo paralelo, sendo que
suas ações se tornam imprevisíveis para eles. Tudo está à favor de Sora e Shiro
e este é o truque irrefutável do autor (vamos
considerar apenas o anime e ignorar o original que ainda está em andamento).
Shiro é perfeita em cálculos, tendo uma mente e capacidade de
calcular e cruzar dados numa velocidade improvável para qualquer ser humano normal
que é impossibilitado de utilizar 100% do cérebro. Shiro é uma máquina humana,
que mesmo psicologicamente abalada, consegue ser superior em intelecto a
qualquer pessoa normal. Somados à malandragem, pericia humana e manipulação de
Sora, o Kuuhaku se torna invencível. Não por acaso eles usam como símbolo uma espécie
de colchete (『 』), que neste contexto, significa informações
ocultadas/omitidas e/ou suprimidas. Ou seja: seus adversários não sabem contra
quem estão jogando, de fato ou quais técnicas eles utilizarão (particularmente, vejo com uma tela em
branco; uma lente pela qual os personagens enxergam o mundo).
É covarde da parte do autor? Talvez. É limitado em termos de
conflitos? Com certeza. É incoerente? Não. Como disse, é abraçar ou largar, mas
faz sentido. Yuu Kamiya exemplifica isso no jogo de xadrez em que ele subverte
a jogabilidade original, fazendo com que as pessoas se tornem ferramentas sensientes,
obedecendo a estímulos e capacidade de liderança do seu jogador. Ou seja, o
jogo se torna um campo de guerra e o jogador precisa se tornar um general
capacitado o suficiente para inflar o desejo das peças-soldados em dar sua vida
ao seu ideal. Era um jogo tão aberto em termos de regras, que não bastava ser
um bom líder, para desequilibrar era preciso ter conhecimento humano. Nisto
Sora levava vantagem e sua adversária não sabia desta sua habilidade, por ele
ser alguém desconhecido vindo de outro mundo, com uma ampla carga de
conhecimento.
O autor faz um uso conveniente de Humanas e Exatas para
atingir o resultado pretendido, em que o espectador/leitor tem um papel
passivo, uma vez que é um tipo de estratégia que esconde as peças do jogo,
impossibilidade sua participação no raciocínio antes deste ser revelado. Faz
parte do jogo, mas a ausência de equilíbrio dramático enfraquece bastante os
conflitos. Uma história pode continuar sendo extremamente divertida e bom
entretenimento sem precisar abrir mão de conflitos que coloquem a segurança dos
personagens em risco e tornem a estruturação do enredo mais rica.
O drama de Shiro, por exemplo, durante uma importante
reviravolta acaba soando artificial por suas ações se mostrarem caricatas (dizem que na light novel isto é
evidenciado com uma carga dramática mais densa). Claro, perde-se de um lado
e ganha do outro, pois ela também acaba por se mostrar bastante fofa e
bonitinha, quando está sofrendo pela ausência do irmão. Ainda assim é um
aspecto que poderia ser melhor. Felizmente, o carisma dos personagens
relevantes e em especial, de Shiro e Sora tem facilidade para conquistar e
fazer a diferença. A química dos dois é incrivelmente evocativa de ternura e de
um amor puro incondicional. Também graças a boa direção que imprime urgência
aos eventos. Acaba que a ansiedade e satisfação não vêm pela imprevisibilidade
ou iminente perigo, mas da ação e reação dos personagens ao que eles são
impostos, além de a ânsia de ter conhecimento de como irá se desenvolver e qual
a estratégia utilizada para casa jogo ser algo que seduz. Todos estas criticas
surgem do fato de NGNL mostrar uma história ainda introdutória e não ter maior
número de episódios para dar mais consistência à premissa. 12 é muito, muito
pouco para um mundo tão vasto. Não é garantido que a obra soubesse aproveitar isto,
mas a impressão que fica é que estes 12 episódios não passam de uma introdução
daquele universo e dos irmãos Kuuhaku, sendo que seus maiores rivais parecem
ainda estar por vir. É uma pena.
Enfim, NGNL é uma bela série, com personagens cativantes, um
mundo em construção de forma exemplar (como
disse, ele ainda está nitidamente em construção e o autor não aparenta pressa
em trabalhar todos os elementos) e que sabe caminhar com segurança na
direção pretendida. Leve, bem humorada, com jogos instigantes e divertidos, com
execução que sabe brincar com os próprios temas da série e seu gênero. Mas
também é importante considerar suas limitações, enquanto ADAPTAÇÃO. É
estruturalmente simples e seus objetivos não vão além do entretenimento instantâneo.
Como também é otaku-centric, ou seja, traz todos aqueles elementos que cativam
o nicho, mas desagradam a grande massa, como o fato de explorarem a
sexualização do corpo de uma garotinha de 11 anos. O fanservice da série pode
ser um entrave para muitos, a despeito disso, foi uma dos animes que mais
gostei de acompanhar nesta temporada de Primavera, pularia de alegria se houvesse uma sequência. Só poderia ter sido mais redondinha e completa.
Nota: 08/10
Direção: Atsuko Ishizuka
Composição de Roteiro: Jukki Hanada
Trilha Sonora: Super Sweep
Estúdio: Madhouse
Tipo: TV
Episódios: 12
Páginas: ANN, MAL
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Galera
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