sábado, 28 de junho de 2014

No Game, No Life (2014): A Vida Através de Uma Lente

 No Anime No Life! Pre-para! que isto ficou longo.
No Game no Life (que para efeitos práticos abreviamos para NGNL – ou simplesmente NogeNora de Nogemu Noraifu, se você é um otaco ardoroso), a adaptação em anime da light novel original de autoria de Yuu Kamiya, que foi bastante festejada e recebida com apreensão por ocidentais [ou melhor, pelos brasileiros], porque seu autor é de naturalidade brasuca e conseguiu realizar o sonho de 6 entre 10 otakus: conseguir vingar como artista no Japão, terra das oportunidades [mas também de altíssima competitividade] para quem quer seguir carreira na indústria como desenhista ou autor.

A série conta a história dos inseparáveis irmãos Shiro (Ai Kayano) e Sora (Yoshitsugu Matsuoka), dois adolescentes hikikomoris (não trabalham, não estudam, não saem de casa para nada e vivem retidos no ambiente virtual) que sofrem de fobia social. O único lugar em que se sentem bem, felizes e completos como ser humano é o ambiente virtual dos games, em que formam uma dupla invencível denominada Kuuhaku (literalmente “espaço em branco”, simbolizada por『  』). Entediado, um deus de um mundo paralelo vê o potencial dos irmãos e os convoca para este mundo de fantasia em que a guerra fora banida e agora as pessoas, os reinos e as diversas raças que o habitam resolvem seus problemas jogando. Lá, Shiro e Sora encontrarão seu caminho se tornando peças fundamentais para a única raça de humanos daquele mundo, ao mesmo tempo em que se sentem motivados pelos desafios constantes que surgem pela frente.
É bem obvio do que NGNL se trata. É sobre a fuga da realidade em um ambiente virtual de fantasia, que se torna um simulacro que substitui um mundo real fadigoso, opressivo e desinteressante. Basicamente, é disto que light novels em geral se tratam; um escape que coloca o jovem comum e mediano num universo agradável com ele sendo o centro deste universo, em que não mais ele será apenas uma engrenagem no sistema, mas a peça fundamental, com tudo girando em torno do seu centro. Aqui, a aventura é divertida, colorida, com as mais diversas garotas que realizam seu fetiche particular (tem a neko, a loli, a servil acéfala e gostosa, as que transmitem um feeling shoujo-ai, a poderosa geniosa que se torna dócil com você, que é o mestre), com bons desafios e etc. e etc.

Esse desejo pela transcendência da carne não é novo, ele é inerente à humanidade e se trata de um tema recorrente do cyberpunk, especialmente o cyberpunk japonês onde corpos humanos se fundem a maquinas e ao virtual – é um grande fetiche do japonês e uma das maiores inspirações para a trilogia Matrix, por exemplo. Mamoru Oshii e Chiaki J. Konaka são alguns dos autores mais conhecidos sobre este tema na esfera de anime e mangá, suas obras tendem a usar a tecnologia futurística para propor uma reflexão filosófica acerca da virtualidade e transcendência. Satoshi Kon também tratou o tema através de uma ótica bem particular, canalizado em Paprika. Em uma geração caótica e insatisfeita, matar o corpo para salvar o espirito/a alma se tornou necessário para transcender a matéria e alcançar uma idealização impossível de se alcançar com “os olhos abertos”. Nunca estivemos tão imersos no virtual como estamos atualmente, onde mesmo uma confraternização precisa ser compartilhada neste ambiente virtual. Claro, é uma questão que traz consigo diversas discussões e controvérsias, que se por um lado interessa à essência do que é cyberpunk [e related], é pouco aprazível para uma obra puramente escapista. As séries otakus também abraçam o desejo pela transcendência, mas sob outro prisma, que é o da salvação (alguns diriam alienação).
NGNL traduz bem esse espírito e, não sei dizer se é uma herança do original ou fora incorporado na adaptação, mas a série utiliza isto como um trunfo ao criar humor através de autorreferências e comportamento caricatural ao próprio meio. Por exemplo, Sora faz piada sobre as mulheres da série que aparecem com o seios expostos, mas sem mamilos. Ou: Shiro e Sora possuem aversão a viver em sociedade e isto se reflete no comportamento deles quando expostos à insolação do ambiente social (o contraponto disto é que eles são seres noturnos que vivem submersos na escuridão do quarto, virando noites a fio jogando, como se fossem morcegos, sem intervenção ou critica de qualquer figura de autoridade – pais ou sociedade), eles se retorcem e agonizam, perdendo as forças e sanidade mental. A série não teme brincar com os fetiches do protagonista otaku (lembrando que essencialmente no Japão, otaku descreve que é fan[natico] por qualquer coisa, similar ao nosso “nerd”, embora estamos acostumados a relacionar a palavra otaku à fãs bitolados de animes e magás), utilizando até mesmo as características de Shiro para satirizar o interesse otaku por lolicon e incesto.

O irônico nessa brincadeira é que por mais que Shiro e Sora se comportem como dois irmãos apegados, mas sem tensão sexual explicita entre eles, há sim um subtexto que insinua que Shiro é a garota principal e por mais que Sora tenha variadas opções, ela é seu único interesse. Tanto que os dois não são irmãos de sangue, mas adotivos, o que se torna uma carta na manga do autor. É obvio que é uma carta que o autor dificilmente irá utilizar explicitamente (obviamente. Shiro tem apenas 11 anos, enquanto Sora tem 18), mas que lhe dá liberdade para utilizar subtextos que insinuem isto e dê margens à fantasias, sem ameaçar o status quo da obra. Ou seja, é aquela questão de CAMADAS: há quem prefira se restringir no primeiro plano em que não há nada de concreto que evidencie este interesse sexual e o seu relacionamento é puro, enquanto há aqueles que se sentem confortáveis em ir além e analisar signos e metáforas comportamentais que evidência uma tendência do autor, que pode ser ou não consciente. Eu particularmente gosto deles como dois irmãos, sem qualquer interesse sexual explicito. É uma relação mais bonita e afetuosa.
Este anime também traz uma parceria extremamente benéfica entre o autor Yuu Kamiya, que inclusive chegou a escrever diretamente o roteiro do episódio 8, e a staff da produção, comandada pela talentosa Atsuko Ishizuka em apenas seu segundo anime como diretora (o primeiro foi o elogiado Sakurasou no Pet na Kanojo). Sua direção é envolvente, econômica e altamente visual, tornando NGNL, um dos animes que melhor conseguiram desenvolver uma linguagem dinâmica e significativa através de ações dos personagens, sem soarem extremamente expositivos. No caso de NGNL a missão era um pouco mais difícil, pois o enredo abrange muita estratégia e jogos com uma lógica complicada, mas a direção ágil de Atsuko em combinação com a economia dos roteiros elaborados por Jukki Hanada (que é homem, :p), não permitiram que o ritmo fosse prejudicado, tornando didáticas a inevitáveis explicações do funcionamento do jogo e a estratégia utilizada (o uso de onomatopeias foi uma sacada excelente). Some isto a uma boa pré-produção do estúdio Madhouse e a envolvida equipe da Atsuko, o que se vê é um anime visualmente bonito com animação bem fluida (o anime anterior da Atsuko, animado pelo estúdio J.C. Staff também tinha essa característica, o que deixou os fãs de Little Busters putos pela discrepância entre os dois, mas muito além de verba maior, uma produção e equipe melhores fazem uma diferença maior num anime).

A staff deste anime foi magnifica e principal responsável por traduzir tão bem a linguagem do original para uma mídia oposta, que não é feita de palavras, mas de som e imagens (Monogatari é exceção porque é exercício de metalinguagem e Mahouka e sua retorica cansativa prova que a falta de equilíbrio não é benéfico numa mídia de imagens em movimentos). Vão dizer que é pelo autor do original ter colaborado. Sim, também ajudou, mas isto não é o suficiente para sustentar uma boa adaptação, caso contrário, seria uma prática recorrente. Porém, evidencia comprometimento e entrega dos envolvidos, algo que faz muita falta à maioria dos animes, em que seus envolvidos geralmente não se sentem motivados e apenas cumprem tabela (todo mundo tem suas contas para pagar). O diretor de Jojo 2012 mesmo foi buscar no autor suas impressões e opiniões, para criar a partir disto um esboço do que viria a ser a série em anime. Por isso é tão bom observar o desenrolar de NGNL, com suas cores hiper saturadas que refletem o espirito da série em ser colorida, vibrante e divertida. Não é pra ser real, e sim fantasioso e divertido, um argumento que estende nas cores e atmosfera. 
Aliás, uma das regras deste mundo paralelo em que Shiro e Sora se encontram, é se divertirem enquanto joga – esta regra é fundamental naquele mundo para se alcançar o sucesso. Outro aspecto que chama a atenção e são bem encaixadinhos, é a percepção satírica do anime em referenciar outras séries de sucesso, como filmes Ghibli, Jojo Bizarre Adventure e Yu-Gi-Oh. São referências bem sacadas que são usadas para fazer humor, muitas vezes, quase imperceptível.

Inclusive, esta disposição de colocar o sentimento de diversão e satisfação acima de tudo, faz parecer que os jogos são superficiais e incoerentes, induzido ao erro de julgamento. São jogos extremamente coerentes e lógicos dentro da proposta da obra. É impressionante a capacidade criativa e a imaginação do autor, que consegue criar estratégias lógicas e, por vezes complexas, envolvendo um amplo cenário, sem deixar que este se torne demasiadamente sério. Por exemplo, as estratégias utilizadas pelo Kuuhaku nunca são com um único objetivo em mente, sempre envolvem consequências lá na frente, fazendo com que as ações se conectem intrinsecamente. Uma peça mexida aqui, que você não entende qual o seu proposito, se mostrará fundamental na próxima etapa. O Kuuuhaku enxerga longe. Entre as estratégias mais complicadas a um olhar mais superficial, estão a do episódio 08 e 12, que envolvem cálculos – com ações que afetam diretamente o resultado da estratégia utilizada do episódio 11 ao 12. Somadas, todas as contas batem certinhas sem qualquer equivoco, mas exigem uma combinação de resultados improváveis.

Por quê? Porque o ser humano, por mais que haja uma taxa comportamental padronizada que é altíssima, é capaz de ações imprevisíveis quando expostos à adrenalina e perigo. Qualquer ação diferente prevista por Shiro de um adversário no jogo mudaria drasticamente o panorama. Mas é ai que está a logica do argumento, que você pode comprar ou não: estes adversários nunca agem inusitadamente fora do padrão (a justificativa encontrada pelo autor está no fato de menosprezarem os irmãos como jogadores e supervalorizarem suas próprias habilidades). E principalmente, Shiro e Sora formam uma dupla imbatível.
Ela é um super computador humano no que se refere à cálculos e porcentagens e ele é extremamente habilidoso em lidar com comportamentos e emoções humanas, sendo que uma de suas maiores características é a de manipular uma situação desfavorável à seu favor, utilizando sua capacidade de ler o comportamento da outra pessoa. Além disso, ambos possuem uma ampla bagagem cultural,  têm a vantagem de virem de um mundo completamente desconhecido das pessoas daquele mundo paralelo, sendo que suas ações se tornam imprevisíveis para eles. Tudo está à favor de Sora e Shiro e este é o truque irrefutável do autor (vamos considerar apenas o anime e ignorar o original que ainda está em andamento).

Shiro é perfeita em cálculos, tendo uma mente e capacidade de calcular e cruzar dados numa velocidade improvável para qualquer ser humano normal que é impossibilitado de utilizar 100% do cérebro. Shiro é uma máquina humana, que mesmo psicologicamente abalada, consegue ser superior em intelecto a qualquer pessoa normal. Somados à malandragem, pericia humana e manipulação de Sora, o Kuuhaku se torna invencível. Não por acaso eles usam como símbolo uma espécie de colchete (『  』), que neste contexto, significa informações ocultadas/omitidas e/ou suprimidas. Ou seja: seus adversários não sabem contra quem estão jogando, de fato ou quais técnicas eles utilizarão (particularmente, vejo com uma tela em branco; uma lente pela qual os personagens enxergam o mundo).

É covarde da parte do autor? Talvez. É limitado em termos de conflitos? Com certeza. É incoerente? Não. Como disse, é abraçar ou largar, mas faz sentido. Yuu Kamiya exemplifica isso no jogo de xadrez em que ele subverte a jogabilidade original, fazendo com que as pessoas se tornem ferramentas sensientes, obedecendo a estímulos e capacidade de liderança do seu jogador. Ou seja, o jogo se torna um campo de guerra e o jogador precisa se tornar um general capacitado o suficiente para inflar o desejo das peças-soldados em dar sua vida ao seu ideal. Era um jogo tão aberto em termos de regras, que não bastava ser um bom líder, para desequilibrar era preciso ter conhecimento humano. Nisto Sora levava vantagem e sua adversária não sabia desta sua habilidade, por ele ser alguém desconhecido vindo de outro mundo, com uma ampla carga de conhecimento.
O autor faz um uso conveniente de Humanas e Exatas para atingir o resultado pretendido, em que o espectador/leitor tem um papel passivo, uma vez que é um tipo de estratégia que esconde as peças do jogo, impossibilidade sua participação no raciocínio antes deste ser revelado. Faz parte do jogo, mas a ausência de equilíbrio dramático enfraquece bastante os conflitos. Uma história pode continuar sendo extremamente divertida e bom entretenimento sem precisar abrir mão de conflitos que coloquem a segurança dos personagens em risco e tornem a estruturação do enredo mais rica.

O drama de Shiro, por exemplo, durante uma importante reviravolta acaba soando artificial por suas ações se mostrarem caricatas (dizem que na light novel isto é evidenciado com uma carga dramática mais densa). Claro, perde-se de um lado e ganha do outro, pois ela também acaba por se mostrar bastante fofa e bonitinha, quando está sofrendo pela ausência do irmão. Ainda assim é um aspecto que poderia ser melhor. Felizmente, o carisma dos personagens relevantes e em especial, de Shiro e Sora tem facilidade para conquistar e fazer a diferença. A química dos dois é incrivelmente evocativa de ternura e de um amor puro incondicional. Também graças a boa direção que imprime urgência aos eventos. Acaba que a ansiedade e satisfação não vêm pela imprevisibilidade ou iminente perigo, mas da ação e reação dos personagens ao que eles são impostos, além de a ânsia de ter conhecimento de como irá se desenvolver e qual a estratégia utilizada para casa jogo ser algo que seduz. Todos estas criticas surgem do fato de NGNL mostrar uma história ainda introdutória e não ter maior número de episódios para dar mais consistência à premissa. 12 é muito, muito pouco para um mundo tão vasto. Não é garantido que a obra soubesse aproveitar isto, mas a impressão que fica é que estes 12 episódios não passam de uma introdução daquele universo e dos irmãos Kuuhaku, sendo que seus maiores rivais parecem ainda estar por vir. É uma pena.

Enfim, NGNL é uma bela série, com personagens cativantes, um mundo em construção de forma exemplar (como disse, ele ainda está nitidamente em construção e o autor não aparenta pressa em trabalhar todos os elementos) e que sabe caminhar com segurança na direção pretendida. Leve, bem humorada, com jogos instigantes e divertidos, com execução que sabe brincar com os próprios temas da série e seu gênero. Mas também é importante considerar suas limitações, enquanto ADAPTAÇÃO. É estruturalmente simples e seus objetivos não vão além do entretenimento instantâneo. Como também é otaku-centric, ou seja, traz todos aqueles elementos que cativam o nicho, mas desagradam a grande massa, como o fato de explorarem a sexualização do corpo de uma garotinha de 11 anos. O fanservice da série pode ser um entrave para muitos, a despeito disso, foi uma dos animes que mais gostei de acompanhar nesta temporada de Primavera, pularia de alegria se houvesse uma sequência. Só poderia ter sido mais redondinha e completa. 

Nota: 08/10
Direção: Atsuko Ishizuka
Composição de Roteiro: Jukki Hanada
Trilha Sonora: Super Sweep
Estúdio: Madhouse
Tipo: TV
Episódios: 12
Páginas: ANN, MAL

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Galera

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