quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Rewrite: Lucia Route (Ryukishi07)

Spoilers, SPOILERS adoidados! Série de artigos de minhas impressões sobre cada rota de Rewrite. Agora a vez da garota intocável.
>Rewrite - Reescrevendo o Mundo Segundo o seu Próprio

Seiyuu: Risa Asaki

Uma das melhores rotas de Rewrite, Lucia começa bem antes que as outras e faz um excepcional uso do tempo que possui para aprofundar a caracterização da heroína, fazendo com que o leitor se distancie daquela imagem caricatural que ganhamos dela no percurso da rota comum e a tornando uma personagem com mais de uma camada – e mais importante: de uma forma que isto soe natural e verdadeiro, diferentemente de Chihaya. Começando com a dinâmica de grupo, que abrange boa parte da rota comum, porém através de um percurso inédito que só é liberado quando vamos em direção à rota de Lucia. Ela é a heroína com a terrível maldição de não poder tocar em nada que possui vida, é natural, portanto, que a partir do momento que voltemos os olhos para a personagem, que seu desenvolvimento tenha inicio através de conflitos que surgem quando ela se aproxima demais, afetivamente, das pessoas – até então, Lucia primava por manter uma distância sadia, tanto que das heroínas, ela é a mais distante no convívio diário com Kotarou e, sempre que interagem, é notório o quando ela se esforça para repeli-lo, o que a principio faz com que ela se pareça uma personagem tsundere.
Ryuukishi acerta ao introduzir o leitor aos labirintos emocionais de Lucia primeiramente através do relacionamento com os amigos do clube. É evidente que a sintonia entre eles não é perfeita, todos mantém um distanciamento seguro do outro, por razões obvias, mas Lucia soa mais fria no sentido de não permitir nem mesmo o contato físico direto com os demais, fazendo com que ela pareça por vezes histérica ou insensível. Neste ponto, Shizuru sendo a sua “escolhida” e única pessoa que ela mantém uma relação a nível íntimo, Ryuukishi opta por um conflito com Chihaya, tornando a teia de relacionamentos bem mais abrangente, ilustrando através de ações a sua dificuldade em estabelecer uma aproximação emocional. Curiosamente, Chihaya acaba sendo uma personagem com muito mais presença, com mais personalidade e autoconsciência aqui do que em sua própria rota. Olhando a forma como ela realmente se importava por Lucia e se sentia profundamente magoada, ela me parecia uma personagem mais humana. O aspecto da amizade é ainda melhor aqui do que eu Chihaya – que também trazia uma dinâmica de interação bacana entre o grupo, no entanto, em Lucia há a ruptura conflitiva que faz com que os laços emocionais reluzam com mais brilho.
Todo esse envolvimento de um grupo de amigos e o modo como eles se relacionam e evoluem através dos laços emocionais era algo que se destacava bastante em Higurashi. Assim como os mistérios e o jogo estabelecido entre sobrenatural e real, personagens com confusão e instabilidade mental, dramas, conflitos que se arrastam desde a infância, piadinhas sexuais infames, fantasias fetichistas e humor pervertido e, claro, a catarse climática. A rota de Lucia tem a assinatura e a formula que consagrou o autor, com elementos de terror psicológico e suspense. O mistério em torno de Asahi Haruka foi bem divertido e soube ser intrigante (também se integra tão agradavelmente à narrativa e proposta do clube, sem soar imposto), houve um determinado momento em que eu realmente comecei a ficar em dúvidas sobre a sua existência: desde o começo eu entendi que Lucia estava alucinando e falando consigo mesma, mas eu não conseguia encontrar uma explicação lógica para as ocorrências sobrenaturais, foi então que comecei a pensar nos poderes de Lucia e cheguei à conclusão de que Asahi era a sua persona traumatizada e colapsada. Mas ainda não podia explicar o porquê de Lucia ter visto aquelas palavras surgindo no papel – não é explicado diretamente, mas é sublinhado através do desfecho desta primeira trama da rota que ela estava alucinando e não totalmente consciente, pois para se proteger, criou uma espécie de personalidade dupla; é um recurso similar ao que ocorre em Higurashi, através da “síndrome de Hinamizawa”. A questão é mais psicológica do que sobrenatural.

De modo que, o que leva Kotarou a se interessar por Lucia fez de sua relação algo natural; primeiro o conflito com Chihaya, passando pelas investigações do occult club, aproximando-os ainda mais, até o desfecho do caso de Asahi, em um momento belíssimo na igreja. Muitos garotos realmente gostam e se atraem facilmente por garotas fragilizadas, com uma história triste e emocionalmente carentes, fazendo com que desejem ser seus príncipes salvadores – formula clássica de boa parte das visual novels, principalmente as que se concentram em envolvimento afetivo. É a formula de Rewrite, onde até mesmo em Terra e Moon, esta é a motivação do protagonista. Em Chihaya, a razão dele querer estar com ela e protege-la eram altamente superficiais; mas a escrita não se concentrar neste envolvimento, mas basicamente em torno de Kotarou e Sakuya e seus próprios conflitos, fez com que isto passasse quase despercebido (o que também denota a fragilidade de Chihaya Route). Em Shizuru, a narrativa em elipse e o fato deles passarem a maior parte do tempo fazendo nada de realmente interessante também fez com que isto não se tornasse tão evidenciado num primeiro olhar. Agora, em Lucia, Kotarou QUERER estar com ela e todos os conflitos que surgem em torno deste relacionamento, fazem com que isto se torne mais evidente e problemático. Se por um lado, agora você é capaz de sentir a sua vontade como sendo uma vontade legitimamente verdadeira, por outro, exatamente por toda esta exposição, quando Kotarou se perde isto se torna mais evidente e desconfortável.
Se Ryuukishi tivesse o tempo ao seu dispor, eu tenho certeza que ele contornaria isto, no entanto, Kotarou é um personagem que não se desenvolve em Lucia, e quanto mais a heroína cresce, mais inferior ele se torna, incapaz de alcança-la. Os conflitos que Lucia carregava eram grandes demais e, francamente, Kotarou com toda a sua imaturidade era incapaz de lidar com tudo aquilo – principalmente pelo fato de: os problemas de Lucia, somente ela poderia resolver consigo mesma, pois era algo muito interno, o máximo que Kotarou poderia fazer, era estar ali, lhe dando apoio. Enquanto tudo o que ele tinha a fazer era estar com ela – sair com ela, fazendo coisas que adolescentes normais fazem, auxiliando-a a superar seus traumas passados através de uma relação que ela sempre sonhou –, era algo que ele poderia lidar perfeitamente bem, mas quando tudo foge do seu controle e Lucia é emocionalmente violentada, se tornando cada vez mais psicologicamente instável, se torna claro que era algo que um garoto comum não poderia lidar. Oh! Clapclap, isso quer dizer que vamos ter um desenvolvimento profundo dessa questão! Errado. O que resulta disto é que Kotarou passa por todo este conflito perdido na história e sem saber como agir, e como um personagem de inserção, onde você é o protagonista, todo o seu conflito se torna ridículo exatamente pela capacidade do jogador de enxergar muito além do que ele consegue. Até certo ponto isto tende a ser algo interessante, mas chega um momento que ele não é capaz de compreender algo obvio que qualquer pessoa que realmente ama alguém, seria capaz de notar. Chihaya e Shizuru lhe dizem que ele está sendo um tolo cego, incapaz de ver o que está diante do seu nariz. E elas estão certas. Será que o que estou lendo é um folhetim melodramático?, cheguei a cogitar.

O que acontece então? Ryukishi não conseguiu dar mais substância à razão de Kotarou – oras, seria perfeitamente natural que com um período tão curto de tempo cronológico que Kotarou não amasse Lucia tão intensamente assim, mas estamos falando de uma história construída exatamente com este proposito – pois sim, Rewrite é a coisa mais diferente que a Key já fez, mas o seu modus operandi é ainda totalmente Key. Portanto, é decepcionante que os sentimentos de Kotarou por Lucia nunca pareçam realmente intensos e profundos, eles não passam a sinceridade necessária no momento chave do enredo. Lucia é levada para longe dele, e antes que possam se encontrar novamente, eles se separam e não vão se encontrar novamente até o momento derradeiro; enquanto isso Kotarou surge como uma figura apática, não o vemos verdadeiramente perturbado e aflito com toda esta situação. Lucia é intensa, é explosiva, é uma heroína trágica e desesperada, buscando exasperadamente por um motivo para continuar sofrendo, ou seja, viva. Lucia passou de um ponto em que poderia se satisfazer apenas consigo mesma, ela quer mais, quer ter alguém que precise dela, que se sentir necessária; quem não quer? – o que é altamente compreensível, afinal, porque lutar para voltar para uma vida sem esperanças? Kotarou por outro lado, não parece compreendê-la e, embora isto pudesse ter se tornado um conflito maravilhoso, nem mesmo no fim ele parece tê-la compreendido ou a si mesmo, dizendo coisas como “você vai viver porque eu quero” e etc, totalmente anticlimático (ok, que textos romanticamente melosos não parece ser o cup of tea do autor, mas todo arranjo final soa tão grosseiro e sem carpintaria). Faltou um pouco mais de sensibilidade emocional (técnica que o autor domina plenamente), principalmente neste clímax. Então, é natural que ao fim, a pergunta continue latejando na sua mente: Kotarou é tudo para a Lucia, mas a Lucia é tudo para Kotarou? A impressão deixada é que não, que ela não passa de uma escada, que o levará a realizar seus desejos mais íntimos e conscientes de ser um herói e salvador, realizando todos os seus sonhos e se sentindo bem por isso, mas em contrapartida?
O desfecho do primeiro clímax foi ÓTIMO. Mas o que houve com o segundo?
Eu posso ver claramente onde Ryukishi quis chegar, mas não funcionou. Ele comentou em uma entrevista que, ao contrário do que normalmente ocorre quando ele escreve, quis se certificar de que o protagonista tivesse um papel proeminente (uma das características do autor são mulheres muito fortes e icônicas, que dominam a cena). A estrutura de Rewrite gira em torno disto, mas há formas e formas de se fazer algo, e o seu Kotarou não foi, definitivamente, um bom protagonista (cadê o Battler?). Claro, devo ressaltar que ele ainda era funcional nas partes mais leves da história, ou seja, na primeira parte da rota.

Lucia é a rota mais romântica de Rewrite, e o relacionamento entre ela e Kotarou é encantador e lindo (no sentido de florzinhas e coraçãozinhos), assim como o encontro que eles tem, é de uma atmosfera simplesmente mágica. Ryukishi explora bastante o aspecto politico e narrativa de múltipla perspectiva, e seu texto é bastante vivo e dinâmico. A leitura flui com muita rapidez e possui grande capacidade de absorção. Se ele tivesse trabalhado melhor o seu protagonista, das heroínas, creio que teria sido a minha rota predileta. Uma última observação: Lucia Route deve ser lembrada também por conter uma das sequências duradouras de combate mais intensas e envolventes de Rewrite, toda vez que eu lia a descrição do cenário, um filme se projetava cinematograficamente na minha mente e eu sentia meu sangue em ebulição; Ryuukishi tece descrições com as mãos dos deuses de modo que você pode ficar indiferente. É incrível.

Avaliação: 3,5/05

Na próxima semana, a princesa desesperançosa aporta nos portos sangrentos do ELBR.

Autor: 透音