Saudações
do Crítico Nippon!
Após
um dos melhores animes que eu já assisti na vida, precisava conferir o que mais a
autora Shion Miura havia feito. E acontece que o anime anterior – este
aqui - baseado em seu livro foi igualmente aclamado. E com razão. Conta uma
história deliciosamente simples e inusitada: o desenvolvimento de um
dicionário. E no processo, nos encantamos pelos seus personagens e pelo desenvolvimento todo desta construção.
“Um dicionário é um navio que navega
num oceano de palavras”, alguém define durante o anime. E
isso irá ecoar ao longo de toda história. Especialmente com seu protagonista
Majime Mitsuya, já surgindo com uma postura curvada, e um apartamento
praticamente transbordando livros empilhados. Ele é recrutado pelos editores
Matsumoto, Araki e o funcionário Nishioka para ajudar a construir o dicionário
A Grande Passagem antes que o sensei se aposente.
Com
problemas interpessoais claros de comunicação verbal, Majime enxerga no
dicionário a oportunidade de colocar em ordem o caos de seus pensamentos que
parecem afogá-lo. Aliás, é interessante que, muitas vezes, o protagonista
não ouça as histórias contadas pelos interlocutores, mas apenas as palavras
isoladamente, que desencadeiam nele reflexões acerca de seus significados,
gêneros, etc. Além disso, a produção é hábil ao demonstrar essas divagações de
forma visual.
The
Great Passage nos mergulha (desculpa) completamente no cotidiano daquele universo
editorial, revelando anotações quase prosaicas dos veteranos (“confirmar a diferença entre ‘enorme’ e
‘colossal’”). Ou mesmo com a insistência deles em perguntarem aos possíveis
candidatos (Majime e, mais tarde, Kishibe) “como
você definiria a palavra ‘direita’?”. Também somos apresentados à técnicas
minuciosas de revisão como colocar uma marca de círculo ou triângulo nas
palavras que aparecem em dicionários concorrentes.
Aliás,
os próprios serviços terceirizados são cobrados com a mesma excelência. É
incrível o cuidado na espessura do papel para caber mais palavras, sem que a
página fique transparente, e mantenha uma boa aderência ao toque. Deste modo,
justamente por acompanharmos o perfeccionismo de todos os envolvidos, quando
surge um pequeno erro, que provavelmente consideraríamos um pecadilho
perdoável, soa algo completamente inaceitável e aterrador. Assim percebemos a
força do anime em nos prender naquele universo de cuidados minuciosos.
Com
personagens cativantes em sua simplicidade e naturalidade, Nishioka tem um
contraste perfeito com Majime, e não hesita em demonstrar sua angústia com a perspectiva
de ficar 10 anos trabalhando em um dicionário. O que não diminui em nada sua
entrega absoluta ao trabalho e a ajudar Majime a se sentir cada vez mais
empoderado naquele meio.
A
relação dos rapazes é construída com uma delicadeza admirável. “Vocês respeitam as forças um do outro e se
complementam”, alguém os define. E isso ocorre desde o primeiro encontro
deles no primeiro episódio. Embora radicalmente contrastantes, suas conversas
são sempre longas e produtivas. O anime, claro, também demonstra isso de forma
visual, como quando Nishioka avisa sobre sua transferência de setor e Majime já
se enxerga afogando novamente em palavras. Para que futuramente, quando
estiverem unidos novamente, ambos apareçam no raso. E num terceiro momento,
culminem com os pés completamente sob a superfície.
Infelizmente,
o mesmo não pode ser dito da relação amorosa do protagonista com a Kaguya. Que
soa deslocada, abrupta em sua consolidação e relativamente fria em uma obra tão
calorosa. Por outro lado, a novata Kishibe, com poucos episódios a sua
disposição, se sai muito bem em cativar o público. Aliás, todos do departamento tem personalidades sólidas e agradáveis, bem como a senhora do prédio do protagonista. E ao vermos Majime tomando
as rédeas da edição, soa apenas natural, comprovando a direção impecável do que
acompanhamos até então.
Outro
exemplo de direção inspirada é quando o personagem aparece se afogando em
palavras e ocorre uma transição para este parado em frente a uma chaleira
apitando, colocando ênfase no som crescente e refletindo o estado emocional
dele. Além disso, a câmera valoriza os cenários da redação e do pequeno prédio
em que Majime mora, entendemos perfeitamente a geografia de cada ambiente. Além
de contar com uma trilha sonora doce, empolgante e que embala sequências de
passagem de tempo de forma magistral.
The
Great Passage é um slice of life da melhor qualidade, apresentando a fundo o
universo que se propõe e investindo de coração em seus personagens. Não há grandes
momentos catárticos, mas assim como Run With the Wind nos deixa sorrindo praticamente
o tempo inteiro. Encerramos a construção daquele dicionário nos sentindo
verdadeiramente parte daquele processo todo, e incrivelmente orgulhosos.
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